Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 17, 1-25, e023011, jan./dez. 2023 • ISSN 1984-9834
Artigo original • Revisão por pares • Acesso aberto
A População do Campo na Educação Básica: o uso de acervos de guarda para a construção de materiais didáticos
The rural population in basic education: the use of guard collections for the construction of teaching materials
Adriana Mastrangelo Ebecken
Resumo Este trabalho buscou analisar o uso de documentos de acervos de guarda para a construção de materiais didáticos para a Educação Básica. Parte da análise de que a população do campo segue invisibilizada nas salas de aula, principalmente sob a perspectiva do seu protagonismo nas lutas e reivindicações sociais, e entende a importância desses atores sociais na construção e desenvolvimento do processo histórico brasileiro e, por esse motivo, a urgência em trazê-los para a compreensão do público discente da Educação Básica. Palavras-chave: Educação Básica. Educação no Campo. História dos Movimentos Sociais no Campo. Materiais Didáticos. Fontes Documentais. Abstract This article seeks to reflect on how it is possible to use documents from guard collections for the construction of teaching materials for basic education. It starts from the analysis that the rural population remains invisible in the classrooms, mainly from the perspective of protagonism in their social struggles and demands. It understands the importance of these social actors in the construction and development of the Brazilian historical process and, thus, the urgency of bringing them to the understanding of the basic education student public. Keywords: Basic Education. Education in the Countryside. History of Social Movements in the Countryside. Teaching Materials. Documentary Sources. | Submissão: Aceite: Publicação: |
Citação sugerida EBECKEN, Adriana. A População do Campo na Educação Básica: o uso de acervos de guarda para a construção de materiais didáticos. Revista IDeAS, Rio de Janeiro, v. 17, p. 1-25, e023011, jan./dez. 2023. Licença: Creative Commons - Atribuição/Attribution 4.0 International (CC BY 4.0). |
Introdução
Este artigo debate a contribuição que os acervos de guarda de documentos podem possibilitar para o desenvolvimento de materiais didáticos na área de Ciências Humanas na Educação Básica. Ou seja, entendendo que estes documentos foram construídos por atores sociais dentro de processos históricos específicos, é possível trazer recortes sócio-históricos para dentro da sala de aula que até então se encontram com visibilidade negativa no ensino escolar. Assim, é possível que se tornem instrumentos de construção de um conhecimento histórico escolar a partir de sujeitos antes desconhecidos ou pouco conhecidos pelo corpo discente.
As reflexões aqui desenvolvidas constituem parte de uma pesquisa de mestrado que buscou questionar a invisibilidade da população do campo no ensino de História na Educação Básica e, ao mesmo tempo, construir um material didático para professores da Educação Básica. Nesse contexto, procurou demonstrar a necessidade de levar essa documentação para além das gavetas e da consulta acadêmica, a fim de retratar sujeitos sociais até então ausentes em diretrizes curriculares e nos materiais didáticos usuais. O Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP/CPDA/UFRRJ) foi um dos acervos de guarda consultados ao longo do processo de pesquisa que resultou nesta investigação, e será aqui retratado no intuito de contribuir na celebração de seus 25 anos de existência.
As considerações propostas dialogam com o que Araújo (2013) traz ao colocar que a possibilidade de construção de uma outra história é pensada a partir do momento em que se compreende que as tradições curriculares no campo de ensino de História trazem relações de colonialidade expressas por meio de marcas de modernidade. Em diálogo com a historiografia e a pesquisa acadêmica, a historiografia escolar pode caminhar criticamente na direção de romper com uma perspectiva etnocêntrica da História. A disciplinarização da História se relacionou com a redução da multiplicidade de mundos e de tempos operada pela razão ocidental. A colonialidade, entendida como um padrão de poder que surge como resultado do colonialismo moderno e que não está limitado a ele, se estabelece também nas formas de trabalho, de autoridade, de relações sociais que se articulam entre si e de conhecimento.
Visibilidades negativas – a ausência da população do campo na Educação Básica
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento curricular desenvolvido pelo Ministério da Educação para toda a Educação Básica, prevista no artigo 210 da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988) e no artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 (BRASIL, 1996). A BNCC tem como elemento positivo gerar um debate sobre a necessidade ou não de um currículo nacional e quais os conhecimentos a serem desenvolvidos a partir dela, no entanto, é nesse sentido também que diz respeito às questões relacionadas ao conhecimento/poder, pois legitima certos conhecimentos em detrimento de outros. A intenção neste artigo é contribuir para que seja possível pensar caminhos com o intuito de retirar a população do campo da visibilidade negativa na educação escolar, compreendendo que o currículo pressupõe processos de constituição de hegemonias, que ocorrem no âmbito da produção, distribuição e consumo do conhecimento histórico escolar, e que esses relacionam-se com as disputas pelo estabelecimento da verdade e do que deve ser ensinado (Ralejo et al., 2021). A maneira como o passado é confrontado repercute na temporalidade histórica e cria formas específicas de se justificar o presente.
Assim, o currículo como espaço de disputa reproduz os conflitos no interior da sociedade em que é produzido, bem como as violências, de forma simbólica, ao não trazer para o conhecimento escolar a formação social de grupos subalternizados e suas histórias de vida. A disciplina História surge, na Europa, no século XIX, com um papel na definição das fronteiras identitárias relacionadas ao pertencimento de uma cultura comum para a construção e consolidação dos Estados nacionais (Gabriel, 2020, p. 288). No Brasil, sua criação ocorre pela dupla criação do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) e do Colégio Pedro II, em 1838. É nesse contexto que se considera que o ensino de História do Brasil segue invisibilizando os sujeitos do campo desde a sua constituição, uma vez que esta, no Brasil, ao ser marcada pela subalternidade e por uma estrutura fundiária concentrada e excludente, demonstra uma rachadura na noção de um Estado-nação democrático, consolidado a partir da afirmação de uma unidade. Apesar de os atores sociais e políticos do campo terem se tornado objetos de pesquisas acadêmicas, a lógica da sua invisibilidade segue presente na Educação Básica. Entende-se que o currículo é um campo de criação simbólica e cultural, permeado por conflitos e contradições, com diferentes instâncias de realizações: currículo formal, currículo real, currículo oculto (Monteiro, 2007, p. 82), e que, a partir disso, é necessário questionar essa invisibilidade e buscar meios de romper com ela.
A BNCC, como diretriz curricular brasileira mais recente, aponta diversos aspectos que dão respaldo à importância em trazer a história da população do campo brasileiro para dentro do ensino de História. São competências específicas da disciplina de História para o Ensino Fundamental:
4. Identificar interpretações que expressem visões de diferentes sujeitos, culturas e povos com relação a um mesmo contexto histórico, e posicionar-se criticamente com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários.
5. Analisar e compreender o movimento de populações e mercadorias no tempo e no espaço e seus significados históricos, levando em conta o respeito e a solidariedade com as diferentes populações (Brasil, 2018, p 402).
Tal competência de área, inclusive, denota a importância em destacar a relação sujeito/trabalho e toda a sua rede de relações sociais (Brasil, 2018, p. 556-557). Entretanto, analisando os dois textos, o primeiro referente à BNCC do Ensino Fundamental e o segundo referente à BNCC do Ensino Médio, entendido enquanto documento norteador do currículo, percebemos a ausência da população do campo, mesmo em termos e conceitos que a retratem nas suas relações sujeito/trabalho possíveis, ainda que, interpretativamente, haja a possibilidade de trabalhar com suas histórias a partir de conteúdos diversos. Para o Ensino Fundamental, por exemplo, a menção aos camponeses, especificamente, aparece somente no conteúdo final do 9o ano em:
Objetos de conhecimento: A questão da violência contra populações marginalizadas; Habilidades: (EF09HI26) Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas (Brasil, 2018, p. 430-431, grifo do autor).
Pereira e Rodrigues (2018) afirmam que a nova BNCC retoma a ênfase na lista de conteúdos, relatando objetivos clássicos do ensino de História. Neste sentido, incute a indispensabilidade de tais conteúdos, ao mesmo tempo que não os problematiza. Para esses autores, a aula de História foi esvaziada do seu potencial crítico em relação às identidades dominantes/tradicionais e do seu papel de construção/reconstrução da memória, pois, apesar de incluírem tópicos alusivos às histórias de negros e indígenas, não denunciam as marcas de sua invisibilidade e silenciamento, muito menos aquelas que atingem movimentos como o dos quilombolas, por exemplo.
No entanto, compreende-se que sendo o currículo um espaço de disputa, a sala de aula também traz os reflexos desses confrontos, visto que, como colocam Ralejo et al. (2021), o ensino de História é um “lugar de fronteira”, ou seja, remete às relações entre as concepções de currículo, de conhecimento histórico escolar, de produção e distribuição desse conhecimento e dos saberes docentes e discentes. Pensar e elaborar possibilidades de visibilizar a população do campo, assim como fazer um movimento recorrente de tornar público a necessidade de visibilizá-los, é compreender que:
Essa concepção de ensino de História [como lugar de fronteira] nos indica que há possibilidades de criar brechas e apostar nas diferenças, na diversidade sociocultural e étnica, promover a inclusão discursiva de sujeitos e identidades silenciados e negados ao longo do processo de escolarização (Ralejo et al., 2021, p. 4).
Narrativas de resistência – a necessidade de trazer esses sujeitos para dentro da Educação Básica
Entende-se que a origem da estrutura camponesa no Brasil esteve nas populações mestiças que foram se formando ao longo dos 400 anos de colonização, com a miscigenação entre brancos e negros, negros e índios, índios e brancos, e seus descendentes (Stédile, 2011, p. 24-26). A tal afirmativa acrescenta-se a colocação de Schwartz (2001) de que, no Brasil, a produção de roceiros e escravos, ou seja, a agricultura de subsistência e a de exportação, estiveram correlacionadas. O autor explica que a classe agrária brasileira não teve origem pré-colonial e sua linhagem não remontava a nenhuma civilização decadente, como aconteceu nos casos europeus, trata-se de uma classe rural resultante da economia colonial e da escravidão, que surgiu à margem da economia escravista e cresceu em importância ao seu lado. Desse modo, coloca-se a relevância de rompermos com um ensino de História do Brasil com um enfoque determinante em uma história econômica ou sob o olhar das relações político-administrativas como ocorre principalmente no retrato inicial do Brasil colonial e imperial.
A história da formação do Brasil é marcada pela invasão do território indígena, pela escravidão e pela produção do território capitalista. Nesse processo de formação de nosso País, a luta de resistência começou com a chegada do colonizador europeu, há 500 anos, desde quando os povos indígenas resistem ao genocídio histórico. Começaram, então, as lutas contra o cativeiro, contra a exploração e, por conseguinte, contra o cativeiro da terra, contra a expropriação, contra a expulsão e contra a exclusão, que marcam a história dos trabalhadores desde a luta dos escravos, da luta dos imigrantes, a formação das lutas camponesas (Fernandes, 2000, p. 25).
Ainda que, a partir de 1960 e 1970, tenha sido constatado o início de um processo de inversão em relação ao perfil da população brasileira quanto aos seus percentuais na relação campo/cidade, em decorrência do desenvolvimento de uma modernização conservadora da agricultura que impulsiona o desenvolvimento da empresa rural e expropria/expulsa do campo parte da sua mão de obra trabalhadora, quando se debruça o olhar para o Censo Agropecuário (IBGE, 2017), pode-se entender um pouco esse Brasil rural. Por mais que 15% da população brasileira representem o campo, trata-se de 15,1 milhões de pessoas em atividades no estabelecimento agropecuário. São 351 milhões de hectares de terra no Brasil, dos quais cerca de 70% dos estabelecimentos têm área entre 1 e 50 hectares. Em contrapartida, 2% possuem de 500 a 10.000 hectares e menos de 1% possui área maior do que 10.000 hectares de terra. Esses dados são demonstrativos de uma concentração fundiária brasileira que tem seu germe no início da ocupação do território pelos europeus e que segue reproduzindo diferenças e injustiças sociais.
O Censo Agropecuário (IBGE, 2017) traz como definição de agricultura familiar, por exemplo, aquela em que a gestão da propriedade é compartilhada pela família e a atividade produtiva agropecuária é a principal fonte geradora de renda. Nesse sentido, os dados levantados para o Censo de 2017 demonstraram que 77% dos estabelecimentos foram classificados como de agricultura familiar – cerca de 3,9 milhões de estabelecimentos, que ocupam 80,9 milhões de hectares ou 23% da área de todos os estabelecimentos agropecuários do país. Esses dados ilustram de que maneira a maior parte da população rural é caracterizada como agricultura familiar, mas que não chega a ocupar metade dos estabelecimentos agropecuários existentes.
Moacir Palmeira (1989) pontua que se, em 1940, a população do campo perfazia 70% da população brasileira, já em 1980 ela passa a se referir somente a 30% desta. No entanto, o antropólogo explicita que foram as migrações internas que permitiram o crescimento urbano no Brasil e apresenta, neste sentido, as estimativas do IBGE de que, em 1970, de 30 milhões de migrantes, 21 milhões se dirigiram para as áreas urbanas. Dessa forma, se há o entendimento de que a constituição da população rural brasileira está no início do processo de construção do país a partir da colonização portuguesa, então, é compreensível que a história da população do campo, suas lutas por melhores condições de vida, seja pela constituição de movimentos sociais no campo, seja pelo fluxo migratório em direção aos centros urbanos, diz respeito à História do Brasil e à formação da estrutura social brasileira. Ou seja, precisa estar representada no ensino da História do Brasil.
Além disso, apesar desta discussão ter o foco no ensino de História, a reflexão sobre a entrada desses atores sociais e suas trajetórias de luta pode ser ampliada também para as disciplinas de Sociologia e de Geografia, quando se pensa sobre a ocupação do território brasileiro e a relação entre sujeitos e sujeitos e natureza. Nesse contexto, dialoga-se com as temáticas identitárias que vêm ganhando força, pois a história da população do campo no Brasil dá conta de abarcar não apenas as questões vinculadas à classe, mas também a identidades plurais. Gabriel (2020) coloca que, a partir da década de 1990, as temáticas como “pluralismo cultural”, “multiculturalismo”, “identidades plurais” se tornaram objetos de debate nas políticas educacionais e pautaram propostas curriculares oficiais, bem como políticas de avaliação dos livros didáticos. Essas identidades plurais permeiam igualmente o campo.
Acervos de guarda como ‘lugares de memória’ e a possibilidade de seu uso didático na Educação Básica – o exemplo dos documentos do NMSPP
Fernanda Monteiro (2014) nos aponta como a memória, a partir da década de 1980, surgiu como uma questão central nas sociedades contemporâneas e preocupação política e cultural com a preservação e guarda do passado. Dialoga assim com Michael Pollack sobre a dicotomia memória e esquecimento em que o presente é pensado sobre uma perda eminente, mas junto à ótica de um esquecimento forçado e da existência de memórias subterrâneas. Nesse sentido, quando se faz referência aos acervos de guarda, deve-se levar em consideração que esses servem não apenas como um instrumento de contenção do passado, mas também como lugar para o resgate e construção de memórias coletivas. Os acervos documentais podem ser compreendidos, portanto, a partir do conceito de “lugares de memória” (Nora, 1993), nos quais a memória se torna um valor, uma forma de poder.
O trabalho do NMSPP como espaço de resgate e preservação da memória social das lutas no campo teve início em 1997. Em 2003, consolidou-se como centro de documentação, reunindo ferramentas de diferentes suportes. O material pesquisado no NMSPP foi pensado para ser incorporado em cadernos didáticos que retratem sujeitos, associações e organizações representativas de diferentes segmentos de trabalhadores do campo. Trata-se de uma busca metodológica para o processo de ensino-aprendizagem que envolve o uso de fontes históricas como possibilidade de reconstituição do passado e aproximação ao presente – diverso – nas variadas experiências de vida. Compreende, assim, a multiplicidade dos sujeitos existente no campo brasileiro e as diversas lutas e reivindicações por melhores condições de vida.
O trabalho em sala de aula com fontes históricas pressupõe um planejamento que compreenda o público-alvo a que ele é direcionado. Bittencourt (2008) apresenta um esquema para o processo de análise e comentário de um documento: descrição (destacando as principais informações contidas); mobilização dos saberes e conhecimentos prévios dos alunos; esclarecimento do documento a partir das informações e saberes; posicionamento do documento em relação ao seu autor; identificação da natureza do documento; e a crítica deste, identificando limites e conexões possíveis. Assim, para além do conteúdo, o uso de fontes em sala de aula permite o desenvolvimento de diferentes habilidades no processo de ensino-aprendizagem.
Para a pesquisa de mestrado, foi necessário realizar uma seleção de cinco sujeitos para a construção do material didático, uma vez que precisou-se considerar os prazos de finalização do projeto. Foram então escolhidos a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab), as Ligas Camponesas, Dona Rosa Geralda da Silveira (quilombola da Região Sudeste do Brasil), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Marcha das Margaridas. Neste artigo são apresentados alguns dos documentos selecionados dentro do acervo do NMSPP referentes a três desses sujeitos: Dona Rosa Geralda da Silveira, o MST e a Marcha das Margaridas.
Conjunto documental 1. Dona Rosa Geralda da Silveira
Nascida em 1929, Dona Rosa foi uma posseira, descendente da população escravizada da fazenda da Caveira, propriedade que pertencia ao complexo agrícola Campos Novos, dos padres jesuítas. A fazenda Campos Novos correspondia ao que é hoje a área que abrange o município de Armação dos Búzios e parte de Cabo Frio e São Pedro da Aldeia, situada entre os rios Una e São João, litoral da baía Formosa, Baixada Litorânea, no estado do Rio de Janeiro. A partir de sua história de vida, é possível trabalhar em sala de aula uma série de conceitos e processos históricos ocorridos desde o Brasil colônia.
Sob a direção dos jesuítas, o objetivo inicial da Fazenda Santo Ignácio dos Campos Novos era empregar e controlar os índios da região. Posteriormente, a fazenda passou a usar o trabalho de negros escravizados, tornando-se também um ponto de distribuição dos que chegavam da África em navios e desembarcavam em Armação dos Búzios. Essa terra se torna disponível com a expulsão dos padres jesuítas e, consequentemente, alvo também do interesse de grileiros. A fazenda principal foi desmembrada e passando a ter novas administrações. Após a abolição da escravatura, os recém-libertos continuaram morando nas terras dessas fazendas. Lá constituíram suas famílias e, em troca do direito do uso da terra, ofereciam trabalho nas plantações de fazendeiros (Peres, 2020).
Dona Rosa da Silveira ficou conhecida como a primeira mulher farinheira da região e liderança local atuando por intermédio do sindicato rural, no qual esteve presente durante a sua organização e fundação. Também foi a primeira mulher a ir vender seu produto diretamente na feira, sem passar pela figura do atravessador. Viveu a repressão no campo antes, durante e após a ditadura empresarial-militar. Sua história foi pensada para tratar em sala de aula de conceitos como: posseiros, grileiros, luta pela terra, terra devoluta, reforma agrária, diáspora, atravessador. Ao mesmo tempo, pode ser retratada em paralelo com períodos históricos diversos como: a atuação dos padres jesuítas no Brasil, colonialismo e escravidão, a Lei de Terras e a crise da mão de obra escravizada no Brasil, a diáspora africana, além de períodos históricos específicos em que viveu como a Era Vargas e a ditadura empresarial-militar. Apresentar a história de Dona Rosa permite ao aluno fazer associações mentais sempre que se deparar com discussões que envolvam a questão quilombola e a luta pela terra e seu direito de viver nela. Desse modo, a história dela transposta para o ensino de História fundamenta-se sob a ótica dos povos afrodescendentes, suas resistências, processos de etnogênese, rompendo com uma parcela das visibilidades negativas impostas à população do campo. Permite tirar do silêncio certas lutas do campo e reconstruir alguns de seus momentos, com o apoio nas discussões acerca da história dos povos afrodescendentes e indígenas.
As pastas consultadas para obter documentação acerca de sua história e da história da região foram: duas pastas referentes a entrevistas realizadas com Dona Rosa (MSPP/en.LST.trans.dr3; e MSPP/en.LST.cli.dr4) e uma pasta referente à documentação produzida pelo Incra relativa a sua atuação no estado do Rio de Janeiro, na qual foram localizados documentos acerca da destinação de remanescentes territoriais a projetos de colonização e reforma agrária (MSPP/epp.INCRA.pr.rj). Nesse contexto, é possível trazer também para a sala de aula uma compreensão sobre a multiplicidade das fontes históricas e a inserção dos alunos no ambiente de construção do saber histórico, uma vez que propicia o contato com a matéria-prima do ofício do historiador.
A seguir, alguns dos documentos selecionados para a construção de atividades para a Educação Básica:
Figura 1: Clipping: Entrevista veiculada em publicação do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim), por meio do Projeto Memória Viva[1] – Página 27. Pasta: MSPP/en.LST.cli.dr4
Figura 2. Trecho de entrevista veiculada em publicação do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim), por meio do Projeto Memória Viva – Página 43*. Pasta: MSPP/en.LST.cli.dr4
Figura 3. Trecho de transcrição de entrevista presente no acervo. Pasta: MSPP/en LST.trans.dr3
Figura 4. Documentação do Incra sobre projeto de assentamento em Campos Novos – Página 1. Pasta: MSPP/epp.INCRA.pr.rj
Conjunto Documental 2. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
O MST viabiliza discutir com os alunos o conceito de movimentos sociais e, a partir disto, compreender a luta por direitos sociais desse grupo específico. Ou seja, é possível trabalhar com conceitos como a propriedade privada da terra, a justiça social e a reforma agrária. Isto porque as próprias bandeiras de lutas do Movimento possibilitam uma série de debates e discussões passíveis de construção do conhecimento escolar. Uma aula utilizando materiais produzidos pelo Movimento admite o questionamento sobre a concentração fundiária brasileira, a exploração da população do campo, a marginalização dos trabalhadores rurais, bem como a violência no campo. Tais questionamentos podem, inclusive, ser transversalizados em distintos recortes temporais como: a colonização do Brasil, a Lei de Terras (1850), a constituição do poder dos “coronéis”, a modernização conservadora durante o período da ditadura empresarial-militar no Brasil, entre outros. E podem, ainda, ser aproximados para o tempo presente e a partir da intensificação da concentração fundiária e da exploração da população do campo pelos grandes proprietários de terras, e também da expulsão compulsória deles pela chegada de grandes empresas transnacionais ao campo.
Assim, por ser um movimento atuante no presente, em escala nacional, permite ainda um diálogo com a História Pública e a construção de um olhar crítico sobre as informações que são veiculadas a respeito do Movimento. Contraria ao mesmo tempo uma suposta tradição de passividade e anomia do povo brasileiro e a de que a produção de alimentos, a produção agrícola decorre somente dos grandes agronegócios.
As pastas consultadas do Movimento foram: Análises estruturais e conjunturais (MSPP/ns.MST.a), que serviu para construir o texto do material, aproximando a própria concepção e o olhar do Movimento sobre a questão agrária no Brasil; Congressos (MSPP/ns.MST.con), que permitiu entender e levar para o texto as demandas e objetivos do Movimento, retratados nos seus eventos; Direitos Humanos (MSPP/ns.MST.dh), que trata do Massacre de Eldorado dos Carajás (PA, 1996); Educação (MSPP/ns.MST.ed), da qual foram retirados alguns textos para mostrar como o Movimento trabalha a partir seus símbolos (hino, bandeira, palavras de ordem) com a juventude sem terra. Além dessas, foram consultadas as pastas: Formação Política (MSPP/ns.MST.fp); História (MSPP/ns.MST.hi); e Ocupações (MSPP/ns.MST.oc).
A seguir, alguns dos documentos selecionados para a construção de atividades para a Educação Básica:
Figura 5. Carta aberta à população – Reforma Agrária Já – Ocupar, Resistir e Produzir (MST, 1981) – Página 1. Pasta: MSPP/ns.MST.oc
Figura 6. Carta aberta à população – Reforma Agrária Já – Ocupar, Resistir e Produzir (MST, 1981) – Página 2. Pasta: MSPP/ns.MST.oc
Figura 7. Cartaz – 10 anos de Eldorado dos Carajás
Figura 8. Hino do MST – retirado do Boletim de Educação no 2, de janeiro de 1993. Pasta: MSPP/ns.MST.ed
Conjunto Documental 3. Marcha das Margaridas
A Marcha é uma grande mobilização que busca fortalecer e ampliar a organização sindical e feminista das mulheres trabalhadoras rurais. Trabalhar com a Marcha em sala de aula permite trabalhar com questões de gênero e das lutas das mulheres, no Brasil, e, neste contexto, com a sua participação em movimentos sociais e sindicais. Trata-se de levar para sala de aula debates que retratem que, apesar da pressão social em manter a figura feminina dentro do ambiente do lar, as mulheres, historicamente, ocupam espaços de luta na sociedade brasileira. Nos anos 1980, no Brasil, as mulheres trabalhadoras se engajaram na luta pelo direito de serem sindicalizadas, reivindicação que se ampliou para conquistar voz e voto nos sindicatos e, depois, nos anos 1990, para conquistar cotas nos postos de direção e deliberação dos sindicatos. Em 1993, foi implementada uma política de cotas de, no mínimo, 30% de mulheres nas direções sindicais – decisão tomada na IV Plenária Nacional da CUT (Central Única dos Trabalhadores).
A primeira Marcha das Margaridas ocorreu em 2000, e contou com a participação de cerca de 20 mil mulheres. Foi a maior mobilização nacional de mulheres já realizada na história do país. Organizada pela Confederação Nacional de Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), em parceria com centrais sindicais, organizações internacionais e movimentos sociais, seu nome homenageia Margarida Maria Alves, sindicalista paraibana assassinada em 1983 por um matador de aluguel a mando de fazendeiros da região. Nesse sentido, a Marcha permite discutir as questões identitárias, além das de classe. Como afirma Hall (2002), o deslocamento/fragmentação das identidades tem características positivas, pois abre a possibilidade de novas articulações. O feminismo emerge nos anos 1960, juntamente com movimentos estudantis, contraculturais e antibelicistas. Abriu para a contestação política a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, em um movimento de politizar a subjetividade, a identidade e o processo de identificação. No contexto deste trabalho, permite complexificar a produção do conhecimento escolar.
Os documentos retirados do acervo do NMSPP estão inseridos na pasta sobre a Marcha das Margaridas, que pertence ao conjunto Sindicalismo Rural e série Sistema Contag (MSPP/sr.SC.c.mm). Eles retratam as bandeiras de lutas, pautas defendidas e o histórico da Marcha. Trazem ainda informações sobre quem foi Margarida Maria Alves, bem como a historicidade da luta das mulheres por demandas específicas de gênero.
A seguir, alguns dos documentos selecionados para a construção de atividades para a Educação Básica:
Figura 9. Box informativo sobre quem foi Margarida Maria Alves presente na publicação Revista da Marcha 2007, da Comissão Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Contag, de março de 2008. Pasta: MSPP/sr.SC.c.mm
Figura 10. Texto sobre o envolvimento das mulheres na luta por melhores condições de trabalho, retirado da publicação Revista da Marcha 2007, da Comissão Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Contag, de março de 2008. Pasta: MSPP/sr.SC.c.mm
Figura 11. Texto sobre o conceito de “soberania popular”, retirado do Caderno de Formação 1 para a Marcha das Margaridas de 2019.
Conclusões
A análise sobre a documentação do acervo do NMSPP demonstra a possibilidade e a importância de levar parte dela para sala de aula. Documentação produzida por movimentos sociais e por pesquisadores desses movimentos, a fim de desfazer a distância entre esses universos e o universo da Educação Básica. A transformação desses documentos em fontes para o aprendizado escolar mostra a possibilidade de romper com um currículo que funciona como violência simbólica via visibilidade negativa de tais atores sociais ao não articular os conhecimentos e lutas presentes nessas histórias. Ainda que esses sujeitos e histórias não apareçam em sua especificidade em diretrizes curriculares oficiais como a BNCC, é possível recorrer a brechas presentes nesses textos.
Nas aulas de História, é importante o uso do conhecimento histórico, a partir de sua dimensão educativa, como forma de inserir os alunos no universo do fazer historiográfico e do desenvolvimento de uma compreensão crítica sobre o mundo. As fontes históricas aparecem com o objetivo de dinamizar e ressignificar o ensino de História, voltar discentes a uma “atitude historiadora” (Ralejo et al., 2021), entender o que são fontes históricas, a multiplicidade das vozes presentes numa sociedade e o que perpassa o processo de tornar o passado inteligível.
Nesse contexto, à medida que as lutas das populações do campo dentro de sala de aula são qualificadas, é possível apresentar uma manifestação contrária à reprodução de um sistema que garante uma assimetria de poder entre grupos sociais, e igualmente permite que – por meio da educação – se conteste as desigualdades sociais que esses movimentos sociais escancaram. Trata-se de promover a inclusão discursiva de sujeitos e identidades silenciados e negados ao longo do processo de escolarização (Ralejo et al., 2021). Dessa forma, pode-se seguir em direção ao que Saviani (1999) discorre como uma pedagogia revolucionária que, longe de secundarizar os conhecimentos descuidando de sua transmissão, considera a difusão de conteúdos, vivos e atualizados, uma das tarefas primordiais do processo educativo em geral e da escola em particular.
A documentação produzida pelos movimentos sociais do campo representa uma memória viva e vivida, podendo ser utilizada para dinamizar a aprendizagem dos conteúdos históricos, mas também para a construção de um saber crítico contextual. Proporciona aos alunos o estabelecimento de uma relação identitária, na qual os discentes são envolvidos no processo de análise das fontes e entram em contato com a memória relatada pelas pessoas. A própria análise da documentação faz parte do processo de ensino-aprendizagem a partir de reflexões, conexões e problematizações que, como conceituam Ralejo et al., (2021), desenvolvem “práticas de letramento” realizadas mediante seu uso.
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Adriana Mastrangelo Ebecken Bacharel e licenciada em História pela Universidade do Rio de Janeiro (Unirio) e pós-graduada (lato sensu) em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Ensino de História pelo programa de Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) pela Universidade Federal. E-mail: dricaebecken@yahoo.com.br ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/2409824372167984 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1096-2348 |
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 17, 1-25, e023011, jan./dez. 2023 • ISSN 1984-9834
[1] Entrevista com Dona Rosa Geralda da Silveira veiculada em publicação do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim), por meio do Projeto Memória Viva. Disponível no acervo do Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP/CPDA/UFRRJ). Título da matéria: “A Negra Redentora – Dona Rosa Geralda da Silveira (Vó Rosa da Farinha)”