Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade

Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 17, 1-28, e023009, jan./dez. 2023 • ISSN 1984-9834

Artigo original • Revisão por pares • Acesso aberto

Tribunal Nacional dos Crimes do Latifúndio (1986-1992): exercitando a memória sobre usos e sentidos do Direito nas ações coletivas

National Tribunal of Latifundium Crimes (1986-1992): memories about uses and meanings of law in collective actions

Luiza Antunes Dantas de Oliveira

Resumo

Em agosto de 1986, movimentos sociais e organizações da Campanha Nacional pela Reforma Agrária criaram o Tribunal Nacional dos Crimes do Latifúndio (TNCL), atribuindo ao Instituto Apoio Jurídico Popular a tarefa de realizar o tribunal popular. Trata-se de experiência de julgamento não vinculada à jurisdição estatal e dedicada a deliberar acerca de crimes não reconhecidos ou tratados de forma insatisfatória pelo Estado. Contando com juristas renomados, as sessões do TNCL recriaram o julgamento dos responsáveis por assassinatos deflagrados em conflitos fundiários. A proposta visa analisar alguns aspectos da experiência deste tribunal por meio da documentação disponível em diferentes acervos documentais. O exercício de memória sobre a experiência do TNCL é conduzido pelo interesse sobre as relações entre ‘Direito’ e ‘movimentos sociais’, assumindo as sessões do tribunal popular como terreno empírico para refletir acerca dos múltiplos usos do Direito no repertório de ações coletivas em torno das disputas pela democratização do Estado naquele contexto.

Palavras-chave: Tribunal popular; Direito; Movimentos Sociais; Violência no campo; Reforma agrária

Abstract

In August 1986, social movements and other organizations from the National Campaign for Land Reform created the National Tribunal of Latifundium Crimes (NTLC), giving to the organization Apoio Jurídico Popular the task of holding the people’s tribunal. The people’s tribunals are trial experiences not linked to state jurisdiction and dedicated to analyze crimes not recognized or treated unsatisfactorily by the state. Counting on renowned jurists, the TNCL sessions recreated the trial of those responsible for murders committed in the context of land conflicts. The proposal aims to interpret some aspects of the experience of this court through the archives available in different collections. The memory exercise on the experience of the TNCL is driven by the interest in the relationship between ‘Law’ and ‘social movements’, assuming the people’s tribunal as an empirical terrain to think about the multiple uses of Law in the repertoire of collective actions around the disputes for democratization of the State in that context.

Keywords: People’s tribunal; Law; Social Movements; Violence in the countryside; Land reform


Submissão:
05 ago. 2022

Aceite:
08 mai. 2023

Publicação:
06 jul. 2023

Citação sugerida

OLIVEIRA, Luiza A. Dantas de. Tribunal Nacional dos Crimes do Latifúndio (1986-1992): exercitando a memória sobre usos e sentidos do Direito nas ações coletivas. Revista IDeAS, Rio de Janeiro, v. 17, p. 1-28, e023009, jan./dez. 2023.

Licença: Creative Commons - Atribuição/Attribution 4.0 International (CC BY 4.0).


Introdução

Nos cartazes de divulgação do Tribunal Nacional dos Crimes do Latifúndio (TNCL), a releitura da obra Guernica, do pintor espanhol Pablo Picasso, assim como a obra original, evoca destruição, sofrimento e dor[1]. Os detalhes da releitura do famoso quadro não deixam dúvidas da adaptação dos símbolos, remetendo às violências e ao estado de conflitividade latentes nos processos sociais no campo brasileiro: uma figura de chapéu e vestes escuras no fundo da imagem, como quem aparece de súbito por uma porta entreaberta, iluminando com o disparo de sua arma a cena de terror que se vê em primeiro plano; um pároco de semblante apavorado parece proteger-se com a cruz em punho, enquanto uma galinha agoniza após ser atacada por um gato preto, uma mulher chora de joelhos pela criança desfalecida em seus braços, entre estilhaços e outros aspectos que, como a obra original, sugerem pavor e devastação. A palavra “Tribunal”, posicionada logo acima das imagens descritas em cartaz (Figura 1), como que sugere um possível alento diante do sentimento de desolação provocado pela cena: justiça.

Figura 1 – Cartaz do TNCL (1987)

Fonte: Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP – CPDA/UFRRJ..

A Carta de Fundação do Tribunal Nacional dos Crimes do Latifúndio foi lançada em 15 de agosto de 1986, assinada pelas organizações que então construíam a Campanha Nacional pela Reforma Agrária (CNRA). Criada em 1983, a CNRA reunia no momento de lançamento do TNCL as seguintes organizações: Central Única dos Trabalhadores (CUT), Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), Central Geral dos Trabalhadores (CGT), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), Instituto de Apoio Jurídico Popular (Iajup), Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Comissão Justiça e Paz de São Paulo e Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Na carta de lançamento do TNCL afirma-se a proposta de realizar julgamentos públicos reunindo juristas de “competência, reputação e renome” para que, “à luz das normas de justiça” sejam apuradas e analisadas situações envolvendo crimes contra a vida de trabalhadores/as rurais, indígenas, suas lideranças e apoiadores/as, e então   proceda com a “determinação dos níveis de responsabilidade, e culpabilize os delinquentes”[2]. Como fica evidente no nome atribuído à iniciativa, trata-se de evidenciar o acirramento das violências contra camponeses(as) e suas organizações como efeito da crescente concentração fundiária no país e dos interesses associados à grande propriedade rural. Já naquele período outras iniciativas da sociedade civil denunciavam o aumento da violência no campo. No mesmo ano de 1986 é também a publicação pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do dossiê Assassinatos no campo: crime e impunidade – 1964-1985, bem como o início da publicação anual dos Cadernos de Conflitos no Campo, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

No conjunto das atividades promovidas pelas redes organizações representativas das populações do campo naquele momento histórico, no bojo das disputas em torno da democratização, o TNCL conferiu expressão pública ao engajamento de um conjunto de juristas, com distintas trajetórias e escala de atuação no país, nas ações coletivas promovidas em defesa da reforma agrária e em denúncia da violência no campo. Como anuncia a carta de lançamento, a partir do que consideram ser “casos exemplares da violência no campo”, as sessões do TNCL foram organizadas com intuito de conferir visibilidade para as formas como a impunidade se fez presente nos crimes contra a vida de camponeses e seus apoiadores motivados por conflitos fundiários, evidenciando manobras realizadas no âmbito das investigações e dos processos criminais. Para além das intenções afirmadas na referida carta, a documentação reunida na pesquisa sugere vejo que as sessões também foram ocasião para a realização de testemunhos públicos por parte de familiares e vítimas dos conflitos perante o corpo de jurados de cada sessão do tribunal popular e em meio ao tom solene reproduzido em atenção aos ritos da jurisdição estatal.

Na primeira década da chamada Nova República foram realizadas quatro sessões do Tribunal Nacional dos Crimes do Latifúndio, sendo a primeira em maio de 1987, em Brasília/DF, a segunda em novembro do mesmo ano, em Salvador, estado da Bahia (BA), a terceira em agosto de 1989, em São Paulo/SP, e a quarta em agosto de 1992, em Porto Alegre/RS. No mesmo contexto, outras tantas iniciativas de tribunais populares denominadas de Tribunais da Terra foram realizadas em outros locais do país por redes conexas de organizações e movimentos sociais camponeses. Conforme documentação reunida em pesquisa, o primeiro tribunal deste tipo ocorreu em Belém, estado do Pará (PA), o Tribunal da Terra: terra, morte e impunidade”, realizado em abril de 1986 como uma experiência que possivelmente inspirou a criação do TNCL naquele mesmo ano.

A ideia de performar um julgamento solene e de forma não vinculada à jurisdição estatal de casos que receberam pouco ou nenhum tratamento pelo sistema de justiça estatal, é denominada genericamente de tribunal popular ou tribunal de opinião[3]. Em obra recente dedicada a experiências do tipo em diversos contextos, Paulose (2020) define os tribunais populares como sendo

(...) one event on a continuum of activities (...) created for the purpose of examining rights violations whereby civil society believes the violation has not been formally recognized or addressed by the state, community, or a legal system.” (p. 2)

Em geral são realizados por movimentos sociais e outras organizações da sociedade civil valendo-se do ritual de julgamento para fazer denúncias, identificar responsáveis e anunciar posições em determinados processos políticos.

No presente texto, proponho uma reflexão crítica acerca da experiência que foi denominada de Tribunal Nacional dos Crimes do Latifúndio, destacando alguns de seus aspectos a partir de um conjunto heterogêneo de documentação reunida. As referidas experiências de tribunais populares ainda não foram objeto de pesquisa, sendo apenas mencionadas em pesquisas sociológicas e historiográficas sobre a luta pela terra e os movimentos sociais do campo no Brasil, como em Medeiros (1989) e Fernandes (2000). Ainda, além de sugerir tratá-lo como objeto direto de reflexão, o exercício de memória sobre o TNCL é conduzido pelo interesse analítico no que se refere às relações entre ‘Direito’ e ‘movimentos sociais’, assumindo as sessões do tribunal popular como terreno empírico para refletir a respeito dos usos do direito nas ações coletivas.

O referencial analítico de interesse contempla discussões sobre a mobilização política do direito nas ações coletivas, tendo como principais referências os trabalhos de Isräel (2009, 2019), Medeiros (2019) e Losekan (2021). A partir de diferentes contextos empíricos, as três autoras tecem diálogos entre os debates voltados para o estudo dos movimentos sociais e ações coletivas e a sociologia política do direito, provocando pensar o recurso ao direito nas ações de confronto para além da incidência direta no Judiciário. As abordagens contribuem para evidenciar o aspecto multidimensional da mobilização política do direito, compreendendo as múltiplas práticas que produzem e disputam seus sentidos no cotidiano das ações coletivas. A presente análise das sessões do TNCL objetiva dialogar com o que é discutido por estas autoras, trazendo aportes a partir de acontecimentos que ainda não foram repertoriados pela pesquisa acadêmica. Em especial, a reflexão permite enfatizar o recurso ao direito pela ótica das interações entre atores individuais e coletivos, constituindo diferentes sentidos em torno dos usos de protesto do direito que podem ser extraídos do conjunto das sessões do TNCL.

Assim como discutido por Losekan (2021), se acionada para enxergar as formas como o direito é mobilizado no repertório de confronto, a ótica sobre as interações constitutivas das ações coletivas permite complexificar análises centradas no binômio ações de contestação institucionais/contidas versus ações de contestação não institucionais/transgressivas, ou ainda, cumprimento versus descumprimento de normas e decisões judiciais. Os aspectos destacados nos tribunais populares permitem compreender o recurso ao direito nas ações de protesto não a partir de um ator, uma organização ou movimento social específico, mas enfocando nas interações entre múltiplos atores, com maior ou menor inserção institucional e maior ou menor relação com as denúncias e demandas em causa.

Medeiros (2019) identifica nos conflitos agrários das décadas de 1950 e 1960 no Brasil os modos como o usos do direito foram agenciados de distintas maneiras, ora respaldando a construção de determinadas categorias políticas, ora no papel de conscientização sobre “ter direitos” e perseguir o enquadramento legal das organizações como forma de fomentar o engajamento dos(as) trabalhador(as) rurais e, finalmente, na criação de um certo consenso a respeito da necessidade de nova lei regulamentando o acesso à terra. Ainda, a autora destaca a importância dos usos do direito para a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) durante a ditadura, que reportava as denúncias sobre conflitos aos canais institucionais se valendo dos termos legais, inscrevendo a luta política em um vocabulário que pudesse ser explicitado em cena pública (MEDEIROS, 2019).

Neste contexto, os tribunais populares em estudo informam aspectos de um recurso ao direito que não necessariamente tem a ver com a confiança no direito ou em determinadas práticas profissionais, mas na mobilização de apoios e formação de coalizões de enfrentamento (LOSEKAN, 2021). No sentido do que propõe Israël (2009), as percepções sobre o Direito são construídas e negociadas nas interações sociais, de forma que o domínio da lei, de seus símbolos e instituições é também tecido e recriado cotidianamente. Assim, a reflexão assume como pressuposto a compreensão do Direito não como um reflexo puro e inerte da correlação de forças, mas como parte dos processos que dão forma e movimento aos arranjos de poder, uma vez que mesmo os constrangimentos impostos pelos formalismos e instituições jurídicas não são colocados de forma unívoca.

Muitas são as leituras e discussões possíveis acerca destas atividades. A eleição de alguns pontos para destaque é realizada com a intenção de compor um conjunto de coordenadas que vai fornecer elementos para diálogo com os aportes analíticos acerca das relações entre direito e movimentos sociais. Além da exposição da metodologia adotada, em tópico a seguir, o texto está organizado em três seções principais. A primeira seção explora o modo como as sessões do TNCL em conjunto procuraram reproduzir os rituais de julgamento próprios à jurisdição estatal. A seção seguinte procura pistas sobre o lugar do direito na construção das denúncias e mobilização de apoios para as disputas que fornecem o pano de fundo dos tribunais populares em estudo. E, por sua vez, a terceira seção explora definições sobre o que são os “casos exemplares” eleitos para julgamento nos TNCL, em contraste com as limitações próprias ao enquadramento jurídico das violências deflagradas em conflitos fundiários. Logo, o exercício de memória sobre os episódios não é orientado na presente análise tão somente pelo critério cronológico e separado episódio por episódio, uma vez que se trata de um recorte a partir de pontos que ressaltam possibilidades de abordagem para a reflexão desejada, e que não esgota todos os detalhes da documentação reunida.

Metodologia e fontes da pesquisa

O presente texto integra um esforço de análise crítica de diversos tribunais populares realizados por organizações do campo ao longo da primeira década da Nova República. Trata-se de pesquisa qualitativa realizada a partir de um conjunto heterogêneo de documentação de diferentes acervos. A pesquisa qualitativa a partir de documentos históricos trabalha com dados que não são escolhidos a dedo (LAHIRE, 2005), pois são os dados por vezes escassos encontrados como indícios daquilo que estamos interessados em compreender. Em se tratando de ações de confronto, a pesquisa histórica fica sujeita a formas seletivas pelas quais os protestos foram documentados, quando o foram, de acordo com as práticas, a ocasião e as finalidades perseguidas pelos diferentes atores sociais que registraram os eventos (CLEMENS; HUGHES, 2002). Assim, mais do que afirmar que a pesquisa se vale de um conjunto de documentação, dada a diversidade das evidências recolhidas, importa ressaltar sobretudo de que maneiras as fontes serão utilizadas, assumindo a intencionalidade teórica dos modos como a pesquisa qualitativa procura se valer dos arquivos. Conforme Clemens e Hughes (2002), os arquivos devem ser lidos como artefatos culturais, como versões e argumentos a respeito de certos acontecimentos, e não como representações objetivas de determinados fatos.

Embora o trabalho tenha utilizado dados inéditos para este campo analítico, a realização dos tribunais populares em estudo não é assumida pela pesquisa como uma lacuna nas narrativas históricas sobre o período. Como sugere Bourdieu (1989), um dos desafios das ciências sociais está justamente em refletir acerca de embates teóricos importantes a partir de objetos precisos “frequentemente menores em aparência, e até mesmo um pouco irrisórios” – em outras palavras, “pintar bem o medíocre” (BOURDIEU, 1989, p. 20). Desta forma, os tribunais populares serão aqui assumidos como um ângulo, dentre outros possíveis, para refletir sobre os usos do direito nas lutas pela democratização da sociedade.

O desenho metodológico da pesquisa acompanha os modos como as fontes documentais foram reunidas até o momento. No acervo do Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo – NMSPP[4] são encontrados alguns cartazes referentes às experiências de tribunais populares da década de 1980, como o reproduzido na Figura 1, bem como cartilhas publicadas pela organização do TNCL e a transcrição da primeira sessão de julgamento, realizada em Brasília/DF em maio de 1987. Em página virtual chamada assessoria jurídica popular[5], constam circulares, informes e atas das sessões do TNCL, de 1986 a 1992, produzidos na época por uma das organizações à frente desta iniciativa, o Instituto de Apoio Jurídico Popular (Iajup). Em publicação da época, Fajardo (1988) apresenta os casos que foram objeto das duas primeiras sessões do TNCL, em Brasília/DF e Salvador/BA, no ano de 1987. O documento-síntese da sessão do TNCL de Porto Alegre, publicado pelo então deputado estadual Antônio Marangon, do Partido dos Trabalhadores (PT) no Rio Grande do Sul, foi encontrado na página Estante Virtual[6].

Finalmente, foi no acervo Memórias Reveladas[7] que foram encontradas mais informações sobre os tribunais, especificamente no Fundo que reúne documentos do Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de vigilância do expediente autoritário. Neste acervo há referências aos episódios de interesse da pesquisa em um total de 363 páginas dos chamados Arquivos Cronológicos de Entrada (ACE) do SNI. Em linhas gerais, este tipo de documento reúne informações, encaminhamentos e apreciações sobre determinado assunto, pessoa, entidade ou fato (ISHAQ; FRANCO; SOUSA, 2012). O SNI foi extinto formalmente no ano de 1990, já no pós-ditadura civil-militar. Portanto, os documentos reunidos para a pesquisa que são oriundos do aparato de vigilância da ditadura referem-se somente às três primeiras sessões do TNCL. Após a extinção do SNI, as atividades de vigilância seguiram operando, no entanto, sob outras siglas menos associadas aos aparatos do regime militar.

Outros registros esparsos que dão pistas sobre a realização das atividades também vêm sendo reunidos: notas breves publicadas em informes da Pastoral Operária; notícias sobre a organização dos tribunais em jornais do Conselho Indigenista Missionário (CIMI); correspondências entre organizadores das atividades em diferentes contextos; atas de reuniões da organização produzidas por agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT); panfletos de atividades acadêmicas; notas em mídia impressa a respeito dos eventos; cartas e registros de encontros da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e organizações integrantes do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH), entre outros. Assim, em grande medida, o próprio esforço metodológico desta pesquisa é também uma mimese da sensibilidade jurídica característica do sistema processual penal brasileiro, como discutido em Lima (2010). Diante da impossibilidade de acesso aos fatos, trata-se de aproximar-se e refletir sobre eles por meio de versões e indícios dispersos em um conjunto heterogêneo de pistas e evidências. Todas as fontes primárias são citadas ao longo do texto em notas de rodapé.

A justiça em cena: ritos e procedimentos do TNCL

A sessão de instalação do Tribunal Nacional dos Crimes do Latifúndio foi realizada em 12 de maio de 1987 na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Brasília. Decorridos quase dez dias, em 21 de maio o Informe no 14/1987, da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário – DSI/Mirad, que descreve as falas proferidas na sessão e lista os indivíduos e organizações presentes, foi encaminhado para a Agência Central do Serviço Nacional de Informações (SNI) e para as divisões de segurança e informações do Ministério da Justiça e do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra)[8]. O registro confidencial[9] do tribunal popular explica a metodologia adotada para o julgamento dos responsáveis pelos assassinatos de lideranças sindicais rurais nos anos anteriores, em sessões que ocorreram nos dias seguintes:

O TRIBUNAL terá funcionamento permanente, ou seja, enquanto houver casos a serem julgados, estarão ocorrendo apurações e instruções de processos, e sucessivas sessões da CORTE (a princípio composta de duas Câmaras com 7 integrantes cada). A juristas de competência, reputação e renome, serão atribuídos alguns casos de assassinatos (de lavradores, advogados, índios, etc.), a quem caberá promover os necessários levantamentos e apurações que conduzam à elucidação dos delitos[10]. (Grifos em caixa alta do original)

As anotações do oficial do SNI investido de registrar a atividade correspondem ao que consta na Circular no 2 do TNCL[11], de janeiro de 1987, publicada em formato de cartilha, e que informa como se pretendia realizar as sessões de julgamentos. Como um código processual orientador TNCL, as instruções parecem escritas para não deixar qualquer dúvida da lisura e transparência do julgamento, fazendo referências diretas aos termos procedimentais do vocabulário jurídico, destacadas entre aspas a seguir.

Na “fase instrutória”, iniciada na data de publicação da circular, caberia aos organizadores do TNCL proceder com as “apurações e instruções processuais” cabíveis para deixar os casos em condições de julgamento. Em seguida, alega-se que os “processos” seriam “distribuídos a uma Procuradoria” que deverá redigir um parecer sobre o andamento de cada um, desde a fase de “inquérito”, observando principalmente o cumprimento de prazos da “legislação processual”, bem como outros “defeitos processuais”, como omissão das autoridades policiais na produção de provas, perda ou alteração de provas documentais, entre outras irregularidades. Na mesma circular, os casos são sistematizados em fichas, reunindo informações sobre os mandantes dos crimes, os executores, os trâmites judiciais já providenciados nas instâncias oficiais, recortes de notícias veiculadas a respeito deles e indicação de fontes para futuras novas informações.

A cada sessão seriam sorteados 11 “jurados” – dentre uma lista de 15 juristas de “renomado saber e que tenham se notabilizado por suas posições em defesa dos direitos humanos” – para compor o Conselho de Sentença. Para cada assassinato a ser analisado pelo Tribunal seria designado um jurista para atuar como “relator”. Qualquer um dos jurados poderia “pedir vistas” dos processos em julgamento, uma vez que deveriam “proferir voto” em todos os casos. Eles teriam que basear suas decisões em todo o “material probatório” apresentado, como fotografias, testemunhas, projeções e gravações exibidas nas sessões de julgamento; e apoiar sua argumentação “na lei, na doutrina e na jurisprudência brasileira”. Afirma-se, ainda, que os resultados do julgamento serviriam de suporte para ações a serem providenciadas perante o Judiciário e, uma vez tratando-se de temas previstos em tratados internacionais, os processos deveriam ser submetidos ao Tribunal Permanente dos Povos (TPP)[12].  

A Circular no 2 registra a ideia de “Conselho de Sentença”, remetendo ao procedimento da legislação processual penal chamado de Tribunal do Júri, um dos mais cerimoniosos ritos do Judiciário. No entanto, a transcrição da sessão de Brasília, bem como o que fora registrado pelo informe da DSI/Mirad, demonstra que o tribunal popular foi conduzido em atenção ao modo de funcionamento de um tribunal superior, onde os ministros dividem-se em câmaras e turmas, um deles atuando como relator de cada caso submetido ao julgamento. Na primeira sessão do TNCL, realizada no auditório da Ordem dos Advogados do Brasil, foram constituídas duas câmaras, sendo a primeira formada pelos juristas Benedito Monteiro, José Carlos Castro, José Carlos Dias, Marco Antônio Rodrigues Barbosa, Maria Eunice Paiva, Nilo Batista e Rosa Maria Cardoso e, a segunda, formada por Antônio Evaristo de Moraes Filho, Arthur Lavine, Belizardo Santos Júnior, Eduardo Seabra Fagundes, Hélio Bicudo, Hermann de Assis Baeta e Jacques Távora Alfonsin.

        Coube ao então presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Márcio Thomás Bastos, atuar como presidente da sessão do TNCL em Brasília. Após sua fala inaugural, seguiu-se homenagem às viúvas de trabalhadores rurais assassinados feita pela atriz Lucélia Santos. Na sequência, passando-se à análise dos casos submetidos ao julgamento, foram ouvidos aqueles responsáveis pela sistematização do andamento investigativo e judicial de cada situação examinada, chamados de procuradores, e, em seguida, os respectivos juízes relatores. Após o voto do relator de cada processo, seguiram-se as manifestações dos demais juristas da câmara de julgamento.

Figura 2 – Cartaz e imagens do TNCL em Brasília-DF (1987)

Fonte: MST (2019) e recortes da Circular no 2 do TNCL (disponível em: https://assessoriajuridicapopular.blogspot.com).

        Como aponta Medeiros (1989), após a derrota sentida pelas organizações camponesas a partir da descaracterização do I Plano Nacional de Reforma Agrária – PNRA em relação à proposta que foi apresentada pelo governo de José Sarney no IV Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais em maio de 1985, na ocasião, a Assembleia Nacional Constituinte acenava como uma nova arena de disputas. Sarney foi o primeiro presidente civil após duas décadas de ditadura militar, tendo sido eleito indiretamente. Nesse contexto, chama a atenção a presença de diversos deputados constituintes na sessão do TNCL em Brasília, como não deixa de notar o agente do SNI[13]: Florestan Fernandes, Aldo Arantes, Aloysio Teixeira Filho, Haroldo Sabóia, Fernando Santana, Edmilson José Valentim dos Santos, Luiz Gushiken, Percival Muniz e Uldurico Pinto.

Naqueles dias os jornais noticiavam a conclusão do relatório da Subcomissão da Reforma Agrária da Assembleia Nacional Constituinte, e algumas das tensões enfrentadas a partir das investidas de grandes proprietários de terra e seus aliados, que se opunham à reforma agrária, para descaracterizar alguns dispositivos caros à proposta defendida pelas organizações representativas de trabalhadores rurais[14]. Como, por exemplo, a proposta apresentada por Darcy Pozza, deputado da Constituinte pelo PDS/RS, que almejava restabelecer o pagamento da indenização pela desapropriação para fins de reforma agrária em dinheiro, e não em títulos da dívida pública, como previsto desde 1964, em dispositivo promulgado na ditadura antes mesmo do Estatuto da Terra.

A primeira sessão do TNCL, além do assassinato de Nativo da Natividade[15], foi dedicada aos assassinatos de Eloy Ferreira da Silva[16] e do padre Josimo Tavares[17], bem como ao “caso Leme/SP”[18]. Dentre os crimes em julgamento nessa sessão, somente para aquele em que foi vítima o padre Josimo foram ouvidas três testemunhas em favor das acusações. Pedro Luis Dalcero, advogado da CPT, a freira Lourdes Lúcia Gói, que atuava junto de Josimo e chegou a ser presa com ele e mais seis trabalhadores rurais pela acusação de envolvimento na morte de dois fazendeiros, e Herilda Balduíno de Souza, advogada que, a pedido da Comissão Justiça e Paz, defendera a Josimo, Lourdes e os trabalhadores rurais no referido processo criminal. As três testemunhas foram ouvidas em público, perante os membros da segunda câmara do TNCL, e responderam às perguntas feitas pelos juristas.

Após a realização da Caravana Nacional pela Reforma Agrária, em outubro de 1987, e apesar dela e de outras tantas atividades realizadas para exercer pressão política em prol das demandas das organizações camponesas, o projeto de Constituição apresentado pela comissão de sistematização conteve mais uma vez as expectativas em torno da conquista de um marco legal que amparasse mudanças mais significativas na política fundiária (MEDEIROS, 1989). Neste caldo de frustrações, entre 12 e 14 de novembro de 1987, no auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, em Salvador/BA, ocorreu a segunda sessão do TNCL. Além de representantes das entidades que assinavam a carta de lançamento do tribunal popular, a sessão também contou com apoio da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais do estado da Bahia (AATR-BA), do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), sediado em Olinda-PE, e de “grupos de advogados progressistas do Mato Grosso e de muitos outros estados” (FAJARDO, 1988, p. 62). Como relata Fajardo (1988), delegações de representantes sindicais de STRs de 23 municípios do estado baiano também estiveram na capital naqueles dias para acompanhar o tribunal.

No início da atividade, o advogado do Iajup e coordenador nacional do TNCL, Miguel Pressburguer, assevera:

Evidentemente não pretendemos, e nem poderíamos pretender, montar um tribunal farsa, um órgão paralelo ao da justiça oficial, que julgasse os crimes, condenado os autores e que, na verdade, não tivesse o poder de fazer executar a sentença. Preferimos, depois de algumas discussões, uma outra forma de atuação que pensamos ser politicamente mais eficaz. Esta forma é estudar cada caso concreto. O processo é xerocopiado de capa a capa na comarca onde está. Com o estudo aprofundado desse processo, podemos verificar onde houve a omissão, a corrupção, a conivência dos diversos poderes públicos que transitaram por dentro daquele processo, seja o Judiciário, seja o Ministério Público, que é um órgão do executivo, sejam os órgãos da política, e seja lá quem for. Existe uma tônica nesses milhares de casos, independente do estado onde foi perpetrado o assassinato. Do Amazonas ao Rio Grande do Sul, é absolutamente idêntica a atuação dos órgãos envolvidos, que deveriam apurar, julgar e punir os criminosos. Então, essa é a finalidade deste Tribunal. Em cima de cada caso concreto, em cima da própria lei brasileira, apontar onde os poderes se omitiram, ou quando se omitiram ou não, de que forma foram coniventes. (FAJARDO, 1988, p. 65-6)

Ainda assim, do mesmo modo da primeira sessão, o TNCL em Salvador também funcionou como um tribunal superior, reunindo, ao final de cada fato apreciado, um texto conclusivo designado de “Acórdão”, assinado por juristas de renome nacional. O informe ao SNI[19], destaca a presença de Antônio Evaristo de Moraes Filho, Hélio Bicudo, Herman Baeta, José Carlos Morais, Modesto da Silveira, Calmon de Passos e Arx Tourinho. Segundo o mesmo informe, a atividade dividiu-se em duas sessões de julgamento “simulado” (grifado no original) voltados para apurar quatro crimes: os assassinatos do advogado Eugênio Lyra[20] e da sindicalista Margarida Alves[21], e as chacinas que ocorreram em Marabá, estado do Pará (PA), conhecida como Chacina do Rio Itacaúnas[22], e em Serra da Onça[23], que fica em Canavieiras, estado da Bahia (BA).  Ao contrário do que aconteceu em Brasília, na sessão de Salvador diversas testemunhas foram ouvidas em público, dando seus depoimentos acerca de cada fato analisado, dentre elas: Lúcia Lyra, esposa de Eugênio Lyra, os trabalhadores rurais Antônio dos Santos, do STR de Santa Maria da Vitória-BA, Adriano José de Souza, do STR de Coribe-BA, o assessor da Fetag-BA, Antônio Dias Nascimento, e o delegado sindical do STR de Carinhanha-BA, José da Silva.

Figura 3 – TNCL em Salvador-BA (1987)

Fonte: Recortes de Fajardo (1988) pela autora.

Em 1989, apesar de algumas conquistas importantes, a derrocada dos setores progressistas no texto da nova Constituição Federal já era uma realidade. Se a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a trazer a expressão “reforma agrária” em seu texto (MEDEIROS, 1993), foi também a primeira que tratou expressamente da função policial das Forças Armadas, consolidando a face militarizada da democracia brasileira (ZAVERUCHA, 2010). Assim, em paralelo às mudanças institucionais que marcam este período histórico, chama a atenção a permanência de expedientes autoritários, normalizados ao longo da transição como uma arquitetura jurídica voltada supostamente para garantir o Estado Democrático de Direito. Para Zaverucha (2010), o trato conservador da Constituição Federal de 1988 sobre as relações civis-militares, a propriedade da terra e os meios de comunicação, é revelador do grau de continuidade do pacto político que deu ensejo ao golpe de Estado em 1964.

No ano anterior, porém, a vitória eleitoral de Luiza Erundina, do Partido         dos Trabalhadores (PT), na Prefeitura da maior capital do país, e do mesmo partido em outras cidades importantes, mantinha no ar o clima de certa renovação na arena política.

O ano de 1989 também foi marcado pelas primeiras eleições diretas para Presidência da República, após duas décadas de ditadura. Pouco antes da atmosfera eleitoral acirrar-se, nos dias 11 e 12 de agosto de 1989 foi realizada a sessão do TNCL na cidade de São Paulo. A atividade fez parte da programação comemorativa do bicentenário da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão[24], contando com apoio da Secretaria Municipal de Cultura, representada pela secretária Marilena Chauí, na gestão de Erundina.

Figura 4 – Corpo de juízes TNCL São Paulo (1989)

Fonte: Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, CPT.

No Teatro Municipal de São Paulo, compuseram o “corpo de juízes” do TNCL os seguintes juristas: Marília Muricy, José Carlos Dias, Antônio Evaristo de Moraes Filho, Eros Roberto Grau, Belizário dos Santos Júnior, Fábio Konder Comparato, Hélio Bicudo, Herilda Balduíno de Souza e João Luiz Pinoh. Em documento mimeografado que traz, com detalhes e correções feitas à mão, um roteiro com a programação prevista para os dias de tribunal, lê-se uma nota manuscrita na página inicial com o nome “Dalmo Dallari”[25]. Mesmo sem poder compreender o motivo exato de tal anotação, trata-se de indício que corrobora a circulação do TNCL por nomes proeminentes do meio jurídico naquele contexto. A atividade voltou-se para exame e julgamento de três casos de assassinatos de dirigentes sindicais: Margarida Alves, Wilson Pinheiro[26] e Carlos da Silva[27].

Figura 5 – Capa do documento síntese do Tribunal Nacional dos Crimes do Latifúndio em Porto Alegre-RS (1993)

Fonte: Rio Grande do Sul (1993).

Quase três anos após a atividade em São Paulo, em 20 de agosto de 1992 foi realizado o TNCL em Porto Alegre-RS. Naquele ano marcado pelas grandes mobilizações pelo impeachment do primeiro presidente eleito por voto direto, a sessão foi  realizada na Assembleia Legislativa da capital gaúcha e debruçou-se sobre a condenação penal de seis agricultores sem-terra – colonos, como então chamados no Rio Grande do Sul – pela morte de um soldado da Brigada Militar em meio às investidas dos militares para dispersar de forma violenta uma manifestação de trabalhadores(as) rurais sem-terra[28]. No dia da referida manifestação, em agosto de 1990, famílias acampadas em vários locais do estado foram à capital reivindicar que o então governador do Rio Grande do Sul, Sinval Guazelli, cumprisse o acordo que fizera meses antes, de viabilizar a compra de terras para assentar trezentas famílias[29].

O documento-síntese do TNCL de Porto Alegre foi publicado pelo mandato do então deputado estadual Antônio Marangon, do Partido dos Trabalhadores (PT) no Rio Grande do Sul. Lê-se no material que o “Júri Paralelo” – o TNCL – foi realizado em denúncia do que ocorrera no Júri Popular, este sim vinculado à jurisdição do Estado, quando Elenir Nunes dos Santos (que, como outros colonos, foi ferida à bala durante o tumulto), Otávio Amaral, José Carlos Gowaski, Idone Bento, Augusto Moreira e José Argemiro de Campo foram condenados pela morte do soldado Valdeci de Abreu Lopes. O mote jurídico principal que deu causa ao TNCL foi a denúncia sobre o caráter genérico pelo qual a juíza presidente do Júri Popular formulara um dos quesitos dirigidos aos jurados, induzindo-os a votarem a favor da condenação dos colonos, contradizendo as respostas dadas pelos mesmos jurados em outros quesitos[30].

As controvérsias em torno dos quesitos formulados pela juíza Elaine Macedo, da 1a Vara do Júri do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, além de darem fundamento aos recursos elaborados pelos advogados de defesa no curso do processo, deram causa e enredo para a quarta sessão do TNCL. A atividade transcorreu como uma apreciação paralela do recurso que a defesa dos colonos elaborou perante o Judiciário e, dessa vez, contou com um corpo de juízes em grande maioria constituído por representantes do Partido dos Trabalhadores (PT), sendo alguns juristas em exercício de cargos eletivos, como: Luiz Eduardo Greenhalg, jurista e então vice-prefeito da capital paulista; Hélio Bicudo, então deputado federal pelo PT/SP; Miguel Pressburguer, advogado e coordenador do Iajup; pastor Uberto Kirchein, representante do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs (Conic); Luci Choinacki, então deputada federal pelo PT-SC; e frei Arno Reckziegel.

Em todas as sessões do TNCL, outros detalhes ilustram certo esforço de mimese do modo como a jurisdição estatal se materializa mediante certos ritos, rotinas e papéis. Além da redação dos Acórdãos, as atas de algumas sessões são apresentadas na forma de petição judicial, com identificação numérica do processo, ementa do julgamento e resumo dos fatos em causa. Com os demais destaques feitos ao longo desta seção, vemos que embora reivindiquem uma legitimidade externa e, sobretudo, em confrontação à jurisdição estatal, é esta que confere a linguagem e os rituais para os sentidos exercitados na ação de confronto. Os ritos solenes da jurisdição estatal são reproduzidos também como forma de dirigir-se a ela, expondo-a e procurando desnudar o que consideram injusto nos atos da Justiça, especialmente pelas omissões quanto aos assassinatos ocorridos em contexto de conflitos fundiários.

Tecendo alianças e narrativas públicas

Submetido à primeira câmara de julgamento do TNCL em Brasília-DF, o caso do assassinato de Nativo da Natividade, dirigente sindical do Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Carmo do Rio Verde/GO, ocorrido em outubro de 1985, foi relatado pelo advogado criminalista Nilo Batista. Em sua fala, o relator retomou detidamente as perseguições que Nativo já vinha sofrendo desde junho de 1983, quando derrotou o candidato apoiado pelo sindicato patronal nas eleições do STR de Carmo do Rio Verde. Ressaltou os descaminhos nas investigações do caso quando o responsável pelo inquérito era o delegado local do município, José Luís Terra, que reconhecidamente tinha relações com os mandantes do crime – o prefeito da cidade, Roberto Pascoal Liégio, e o advogado e presidente do sindicato patronal, Geraldo Reis   –, e o avanço nas apurações a partir da designação de um delegado especial vindo da capital do estado, Goiânia. Na conclusão de seu voto, o advogado criminalista aponta:

Concluo que a polícia local tentou impedir a apuração, pois que há elementos nestes autos apontando que o delegado Terra ia impedir a apuração. Recomendo ainda que, em casos como este, sempre seja designado um delegado estranho ao local. Acho também que a autoridade policial destes casos deve ser sempre alguém desvinculado das relações locais e que venha com sua equipe de fora, se possível da capital, para fazer investigações. Concluo que a justiça local enfrenta problemas para a condução do caso e sugiro alteração do Código de Processo Penal no artigo 424, para que os casos dessa natureza sejam sempre desaforados para a capital do estado. (FAJARDO, 1988, p. 18)

A presença de figuras públicas de grande expressão na seara criminal, e talvez  pouca ou nenhuma expressão para as disputas em prol da reforma agrária, não é descabida. Aquele era um momento de grande evidência do “perfil renovado” com que os grandes proprietários se apresentavam em cena pública, por meio das Associações de Defesa da Propriedade e, sobretudo, pela União Democrática Ruralista (UDR), criadas logo no início da Nova República em reação ao lançamento do I Plano Nacional de Reforma Agrária – PNRA (BRUNO, 2002; 2009). As novas entidades representativas do patronato rural afirmaram suas posições na arena política, disputando cargos eletivos e integrando os blocos representativos de empresários e industriais na Constituinte (MEDEIROS, 1989). No bojo desta face pretensamente renovada, também passam a apostar na intensificação e ostensividade das ameaças e assassinatos de camponeses e seus apoiadores, amparadas pela impunidade dos mandantes que vigorava como regra neste tipo de caso (FIGUEIRA, 1986; ALMEIDA, 1988; MEDEIROS, 1989).

        Em especial nas três primeiras sessões do TNCL, ocorridas no calor dos embates em torno da democratização, chama a atenção a participação de juristas que não possuíam relação direta com as lutas sociais no campo, seja por meio do vínculo com organizações camponesas ou entidades de apoio, e na maioria dos casos, tampouco possuíam vinculação político-partidária. Assim como sugere Israël (2009), o engajamento deste conjunto de juristas poderia soar como sendo orientado por compromissos morais de ordem pessoal, dispersos e minoritários se vistos pela ótica do meio jurídico profissional. No entanto, uma vez reunidos na presente reflexão histórica e identificados no bojo das interações entre distintos atores sociais, contribui para uma compreensão relacional dos usos de protesto do direito. Juristas de renome nacional, que talvez não teriam lugar em outras formas de ação coletiva no repertório de confronto em torno dos processos sociais agrários, agindo não somente como “ajudantes de causas alheias” ou como “intérpretes especializados” (ISRAËL, 2009), mas assumindo posições políticas a fim de mobilizar apoios e sensibilizar a opinião pública para o compromisso com a democratização, em voga naquele momento histórico

A participação destes juristas, que contribuem com a composição ritual das atividades, bem como a produção de provas – notadamente a oitiva pública de testemunhas – em quase todas as sessões do TNCL, pode ser relacionada ao que Israël (2009) identifica como modo de confrontação “à sombra da lei”. Como a autora nos inspira a pensar, sob pretexto do respeito aos formalismos e instituições judiciais, os tribunais populares encenam os ritos da jurisdição valendo-se das formas jurídicas não para o fim de conseguir decisões favoráveis, já que se trata de julgamento simbólico, mas como meio de expressão de denúncias e apresentação de demandas. As figuras do meio jurídico profissional se posicionaram nas sessões do TNCL não mediante interpretações fundadas em nova doutrina jurídica ou novos valores críticos, mas sim ancorados em uma leitura jurídica tradicional, atenta às lacunas e descaminhos das investigações e processos judiciais. A afirmação da ausência de responsabilização dos crimes contra trabalhadores(as) rurais e seus apoiadores, emerge aqui principalmente como maneira de apontar aspectos da violência como reflexo da alta concentração fundiária, e a ausência de uma política de reforma agrária como produtora de arbitrariedades no campo.

O apreço pelas formas e ritos da Justiça como meio de legitimação de questões políticas não é caro somente às ações de confronto político. Pereira (2010) demonstra em seu trabalho como a repressão política praticada pelo regime instaurado com o golpe de 1964 no Brasil, se comparada com outros regimes ditatoriais na mesma época em países como Chile e Argentina, foi em certa medida objeto de processos judiciais públicos (não sigilosos), respaldada pela Lei de Segurança Nacional, contando com participação de juízes(as) e advogados(as) civis, registrando “a luta do regime para manter o domínio nos níveis prático e simbólico” (PEREIRA, 2010, p. 38). Sem ofuscar a dimensão das ações clandestinas e arbitrárias como marca cotidiana da repressão da ditadura no país, trata-se aqui de destacar a forma como também os militares procuravam valer-se da autoridade simbólica do direito, cujos ritos e linguagem são dotados de particular tecnicismo, capaz de dissimular questões políticas e ocultar uma força de persuasão baseada na sua aparente objetividade (ISRAËL, 2009). Assim, os usos do direito no repertório de ações coletivas que marca o fim da ditadura no país conformam um leque de práticas que desafia as próprias tentativas do regime de encenar um Estado Democrático de Direito, apresentando-se como forma jurídica-racional do exercício do poder.

O diálogo com o trabalho de Pereira (2010) se faz interessante também para refletirmos sobre outro aspecto do que está em causa nas sessões do TNCL. A presença de juristas que atuaram em diferentes frentes de oposição ao regime, na defesa de presos políticos, em denúncia de grupos de extermínio e nas disputas pela anistia política, por exemplo, sugere um esforço para tecer conexões em favor da compreensão do caráter político das violências no campo. As violências cometidas pelo “latifúndio” – grandes e pretensos proprietários rurais e empresas do setor agropecuário – contra camponeses e suas organizações, patentes em todos os casos analisados pelas sessões de julgamento, contam com amparo direto e indireto de autoridades e agentes públicos. Em todas as sessões, as testemunhas e os votos proferidos pelos juízes evidenciam a conexão entre o modo de atuação de figuras do Executivo, Legislativo e Judiciário nos casos de assassinatos, ameaças e expropriações de terras.

Na sessão em Salvador-BA, ao proferir seu voto, o advogado Roberto Franco destaca a facilidade como elites rurais e urbanas matam lideranças de organizações representativas de trabalhadores, propondo pensar: “Por que tanta ousadia? Por que se organizam grupos como o Várzea, a UDR, organizações como Esquadrão da Morte?” (FAJARDO, 1988, p. 105). Nos anos 1970, o então promotor de justiça Hélio Bicudo notabilizou-se pelas denúncias sobre o modo de agir do chamado Esquadrão da Morte[31], que era bastante semelhante ao das “firmas de segurança” (FIGUEIRA, 2021, p. 58) criadas a partir de 1985 e que agiam a serviço dos latifundiários em diferentes regiões do país. Figueira (2021) destaca por exemplo a firma Sapucã, na região de Manaus-AM, o grupo Solução, no estado de Goiás, ambos coordenados por policiais, e o grupo de Sebastião da Terezona, na região de Marabá, sul do estado do Pará.

A despeito da designação “crimes do latifúndio” sugerir o caráter privado dos interesses que motivam a violência contra trabalhadores rurais, nas sessões do tribunal popular são afirmadas a todo momento as conexões entre grandes propriedades, Estado e capital estrangeiro que viabilizaram o projeto político-econômico da ditadura para o campo, resultando em maior concentração fundiária e acirramento dos conflitos fundiários. Neste sentido, a intensificação da violência contra camponeses, suas lideranças e organizações apresenta-se como um vetor de realização do projeto de “modernização da agricultura”, e a face mais cotidiana com que populações camponesas experienciaram as transformações no campo.

Reproduzindo um extrato do Jornal do Brasil de 13 de maio de 1987, que noticiou a realização do TNCL em Brasília, o Boletim da Comissão Pastoral Operária (CPO) informava que “os trabalhos [do TNCL] partem da coleta de 1.188 processos e inquéritos referentes a assassinatos no campo, de 1964 a 1986”, dentre os quais “apenas dois foram levados a julgamento”, caracterizando a atividade como “(...) um julgamento que não vai levar ninguém para a cadeia, mas vai colocar em posição bastante incômoda a Justiça brasileira”[32]. Ao reunir casos de assassinatos em contextos diversos, o exercício do tribunal popular parece afirmar um sentido comum e único, o padrão de impunidade dos mandantes como dotado de uma intencionalidade política compartilhada por diferentes atores no aparato estatal.

Por sua vez, a leitura dos agentes do SNI sobre as sessões do TNCL também é atenta ao caráter político, não da violência no campo, mas das atividades de tribunais populares. Na ótica militar, são destacados os elos político-partidários de cada participante, trechos de depoimentos e discursos, procurando mapear redes de militantes ex-exilados(as) de organizações cassadas na ditadura e de organizações comunistas de outros países, elencando oito indicadores de “Ligações no Processo Subversivo” a serem aferidos pelos militares. Nos informes, a menção a determinadas pessoas ou organizações é acompanhada de anotações acerca de possíveis pertencimentos partidários ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Partido Revolucionário Comunista (PRC), Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Comunista Italiano e Partido Democracia Proletária.

Quando o SNI já não mais existia[33], em agosto de 1992, o TNCL de Porto Alegre-RS foi a sessão deste tribunal popular menos vinculada à rede de organizações que dera ensejo à CNRA, e mais fortemente associada a um partido político, o PT, e a um movimento social, o MST. Da mesma forma que as demais sessões, esta foi realizada como atividade de denúncia e mobilização de apoio, valendo-se dos ritos da jurisdição estatal. Porém, dentre todas as sessões, o tribunal em Porto Alegre foi marcado por mais expectativa em torno da reversão da condenação dos seis colonos acusados pela morte do soldado. Aproximando-se do que Israël (2009) identificou como uma resistência “em nome da lei”, tratava-se, então, mais uma vez, de afirmar uma leitura crítica acerca dos cânones tradicionais do direito processual penal, mas sobretudo afirmá-los em defesa da reversão da condenação dos colonos na jurisdição do estado do Rio Grande do Sul. Naquele contexto, de modo sensivelmente distinto daquele experienciado nos tribunais ocorridos em meio aos embates pela democratização, além da demonstração do caráter político das violências deflagradas nos conflitos fundiários, a quarta sessão do TNCL defrontava-se com a intensificação das investidas difusas de criminalização das lutas sociais camponesas e, em especial, do MST.

Os ‘casos exemplares’ e o enquadramento jurídico-formal das violências no campo

Nas Circulares nos 2 e 3 do TNCL[34], de janeiro e março de 1987, respectivamente, são expostos em detalhes os critérios adotados na seleção de “casos exemplares” para o julgamento simbólico. Estes são identificados como os que, “dentre os muitos homicídios perpetrados pelos latifundiários contra lavradores e seus aliados”, representam “o tipo de agressão sofrida cotidianamente pelo trabalhador e por padres, freiras, advogados, agentes de pastoral, entre outros.” Um grupo de juristas denominado “Promotoria” seria responsável por analisar a atuação ou omissão das autoridades policiais e judiciárias em cada caso, identificando “defeitos processuais” e, em seguida, produzir relatórios analíticos sobre “como deveria ter sido o processamento normal (do ponto de vista do direito e da justiça) do caso, e confrontando com o andamento que efetivamente mereceu por parte das instâncias envolvidas”.

O critério ganha um contorno sensivelmente distinto na definição exposta no Boletim no 5 da Secretaria Jurídica do Regional Nordeste do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH)[35] – uma das organizações proponentes do TNCL –, que define como “exemplares” os casos: “(..) pela repercussão que tiveram; [que] tenham sido efetivamente julgados pelo Poder Judiciário; [nos quais] tenha havido impronúncia por parte do Juiz[36]; ou que estejam paralisados sem perspectiva de julgamento a curto prazo”. Os diferentes esforços de definição objetiva dos fatos a serem examinados pelo TNCL são ilustrativos das limitações enfrentadas no exercício de mimese da jurisdição estatal e do enquadramento jurídico-formal de fatos cujos sentidos derivam de um estado de conflito latente no contexto em que ocorrem.

Pelo conjunto dos casos escolhidos para julgamento em cada sessão do TNCL, vemos que nas três primeiras sessões foram considerados “exemplares” os assassinatos de figuras com algum papel-chave e/ou projeção política no contexto dos conflitos, como dirigentes sindicais, advogados, padres e agentes pastorais, e dos quais conseguiu-se acesso a mais informações, seja por meio dos inquéritos e processos judiciais, seja por outros indícios e versões apresentados por familiares e testemunhas. O maior conjunto de informações acerca de determinados crimes, assumidos como representativos do caráter político destas mortes e perseguições no campo, tornou viável a dramatização do exercício de julgamento nos moldes de como realizado pela jurisdição estatal, inscrevendo cada um dos casos em relações objetivas entre culpa e inocência.  

Na jurisdição estatal, via de regra, a lógica individualizante é mecanismo através do qual os fatos são atomizados, deixando em segundo plano o seu contexto ampliado. Nos tribunais populares, se, por um lado, a seleção de tais casos auxilia na dramatização do ritual de julgamento, por outro, também incorre no risco de descaracterizar o caráter político de formas mais cotidianas e dispersas de violência. Ainda assim, de modo geral, o tratamento dos “casos exemplares” no TNCL não impediu que os conflitos fossem explorados pela fala dos participantes no sentido de estender os significados de violência para além de sua expressão física. Em contraste com a seleção dos casos para julgamento, os testemunhos públicos de camponeses, em especial no TNCL em Salvador/BA, evidenciam outras camadas[37] do que é designado genericamente como “violência no campo” e dão o tom deste caráter cotidiano, disperso e menos visível que os conflitos assumem no seu estado latente[38].

O exercício de enquadrar o andamento dos inquéritos ou processos judiciais, identificando prazos e etapas descumpridas, dentre outras omissões processuais, como forma de demonstração objetiva de como a impunidade se reproduz, apresentou alguns limites já na primeira sessão do TNCL em Brasília-DF. Um dos casos em julgamento foi o assassinato, em 16 de dezembro de 1984, de Eloy Ferreira de Silva, presidente do STR de São Francisco, estado de Minas Gerais (MG), onde ganhara a alcunha de “herói dos posseiros” (CARNEIRO; CIOCCARI, 2011) pela sua destacada atuação desde o final da década de 1970 contra investidas de grilagem de terras no norte de Minas Gerais. Pela transcrição da fala do jurista José Carlos Dias[39], que atuou como juiz relator, vemos que, ao longo do exame do respectivo inquérito policial e processo judicial, a motivação política do agente dos disparos ficara em suspenso, relativizando a condição “exemplar” deste caso perante o tribunal popular. Eloy já havia denunciado publicamente que sofria ameaças de morte por parte de fazendeiros e do juiz local, em virtude da sua atuação em denúncia de grilagem de terras e expulsão de posseiros. No entanto, duas versões surgiram para a sua morte. A versão predominante no inquérito indicava disputa de caráter privado, sobre o controle de uma porção de área limítrofe entre áreas de posse de Eloy e de seu vizinho, Paulo Leonardo, que cometeu o assassinato. O cerne da discussão que predominou na jurisdição estatal parece ter assumido, diante do tribunal popular, um caráter imponderável que dificultou o exercício pretensamente objetivo e uniforme de apresentação dos “casos exemplares”. Ao pedir a palavra, o advogado Liszt Vieira, membro da “Procuradoria”, após a leitura do relatório, expôs:

(...) este caso não se nos apresenta com a forma tão transparente, cristalina e pura como o apresentado hoje pela manhã [assassinato de Nativo da Natividade, dirigente do STR de Carmo do Rio Verde/GO]. Nós temos que fazer intervir algumas mediações, interessa-nos menos a motivação imediata que levou o fazendeiro Paulo Leonardo a cometer crime de homicídio, assassinando Eloy Ferreira da Silva, e ter que ir às causas profundas, às interrelações que existem dentro de um quadro que armara a mão assassina do acusado. Neste sentido achamos que o motivo imediato que levou ao assassinato é apenas a aparência do fenômeno e se indagarmos com mais profundidade, chegaremos à essência da questão que é o conflito da terra. (...)

Para além da reprodução dos rituais solenes que caracterizam o funcionamento da jurisdição estatal, dentre outras características formais do direito e que são externas à dimensão de sua racionalidade, os sentidos tensionados em torno da seleção dos “casos exemplares” são ilustrativos da forma como Weber propõe enxergar o fenômeno jurídico. Uma das faces que Weber (2004) aponta como característica da formação do direito ocidental moderno é o esforço de sistematização de aspectos considerados relevantes do ponto de vista de postulados universais, preceitos abstratos logicamente claros e internamente coerentes. Este esforço, de certa forma reproduzido pelo TNCL – na medida da identificação objetiva dos “defeitos processuais” cometidos pela jurisdição estatal e da forma como “deveria ter sido o processamento normal (do ponto de vista do Direito e da Justiça)”– já na primeira sessão do tribunal popular parece não ter sido suficiente para a tessitura de uma narrativa estável a partir do Direito, uma vez que este é inevitavelmente construído e a todo tempo tensionado por questões “não jurídicas”, ou melhor, não inscritas nesta racionalidade específica ou desimportantes para ela.

Considerações finais

Em documento de avaliação das duas primeiras sessões do TNCL, datado de setembro de 1988 e assinado por Daniel Rech, representante do Iajup, comenta-se acerca da repercussão das atividades na imprensa nacional e destaca-se o apoio de centenas de organizações estrangeiras (partidos políticos, sindicatos, organizações transnacionais, entre outras instituições), que se fizeram representadas em cada atividade e também contribuíram com a campanha internacional de denúncia das violências no campo brasileiro[40]. Na mesma avaliação, também se destacou que a atividade repercutira entre as autoridades no país, já que receberam “(...) respostas e até ofícios espontâneos do Ministério da Justiça, do CNDDPH e de autoridades estaduais.” Ainda na conclusão, sugeriu-se como contraponto que a atividade de maior repercussão foi a ocorrida em Salvador-BA, que contou com maior número de trabalhadores(as) rurais participando do julgamento, delegações dos STR vindas de diferentes municípios da Bahia.

Seja qual for a avaliação da efetividade, ou do alcance das sessões do tribunal popular, pelos próprios atores sociais que o construíram, a presente pesquisa fornece algumas pistas para pensar na trama de relações em que os sentidos do Direito são agenciados nas ações de confronto. Pela mimese ritual e posições manifestadas de acordo com os cânones jurídicos tradicionais, as denúncias foram expressas em termos cuja força de persuasão advém da pretensão de objetividade própria ao direito. E que, para os olhos do SNI, não impediu a tradução da atividade para os elos político-partidários destacados a partir da presença de cada participante e organização.  

O exercício de memória do TNCL, com base nos enfoques escolhidos para a presente reflexão, procurou evidenciar que a mobilização política do direito é também construída por sentidos oriundos de outras dimensões dos conflitos, bem como sujeita aos constrangimentos colocados pelos formalismos legais. Ou seja, trata-se de recurso que não tem a ver necessariamente com uma confiança no direito ou em determinadas práticas profissionais, mas que pode também extrair legitimidade de aspectos alheios a essa racionalidade específica e ser por esta constrangido. O engajamento de juristas de renome nacional e ligados à defesa jurídica de opositores do regime aparece aqui como uma certa aposta de confronto “em nome da lei” de forma a explicitar a face criminosa das ações do patronato, apontando as conexões políticas da violência no campo.

Finalmente, esta reflexão não esgota todas as possibilidades de leitura do que foi o TNCL, nem houve tal pretensão, mas procurou contribuir para compreendermos os múltiplos sentidos do direito nas ações coletivas, apontando aspectos ainda por serem melhor discutidos. Mediante o conjunto de traços destacados das sessões de julgamento do tribunal popular fica evidente o quão porosas são as fronteiras entre o jurídico e o político, perfazendo um direito que é parte, não suficiente por si mesma, dos arranjos que conferem forma aos termos que a disputa política assume no bojo dos confrontos. O olhar sobre as práticas que dão corpo à mobilização política do direito revela um leque ampliado de usos e alcances deste recurso nas ações coletivas, afastando a compreensão de um caráter unívoco e centrado na jurisdição estatal.

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Luiza Olivera

Doutoranda no Programa de Pós Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade - CPDA da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), sob orientação da professora Leonilde Servolo de Medeiros, na linha de pesquisa "Conflitos, Movimentos Sociais e Representação Política". Mestra em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito - PPGSD da Universidade Federal Fluminense (UFF), sob orientação do professor Valter Lúcio de Oliveira, na linha de pesquisa "Conflitos Socioambientais Urbanos e Rurais". Advogada, bacharela em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Entre 2022 e 2023 desenvolveu estágio de doutorado sanduíche na Universidade da Califórnia, Irvine (UCI), sob supervisão do professor David S. Meyer. É vinculada ao Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência em Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo - NMSPP.

E-mail: luiza.ado@gmail.com

ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/9446845313998610

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1941-3086

Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 17, 1-28, e023009, jan./dez. 2023 • ISSN 1984-9834


[1] A autoria da obra é identificada pela assinatura grafada nos cartazes, no qual se lê Gerardo Hanna. Não foram encontradas informações que permitissem confirmar se esse é mesmo o nome do artista, tampouco outros dados a seu respeito.

[2] A carta foi parcialmente reproduzida em Fajardo (1988), e consta da íntegra no documento Jornal do TNCL, publicado pelo Instituto de Apoio Jurídico Popular (Iajup) em 1987, e encontrado na página: https://assessoriajuridicapopular.blogspot.com.

[3] A literatura acerca destas experiências, em geral, remete ao chamado Tribunal Internacional para os Crimes de Guerra, realizado em Estocolmo, em 1967, por iniciativa do filósofo inglês Bertrand Russel, como sendo o primeiro evento do tipo na história moderna (PAULOSE, 2020; BYRNES, SIMM, 2018). Byrnes e Simm (2018) indicam referências bibliográficas que tensionam esta convenção, repertoriando experiências de julgamentos simulados ocorridos nos Estados Unidos e na Inglaterra já antes da Segunda Guerra Mundial.

[4] O acervo de documentação ligado ao Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade – CPDA, da Universidade Federal Rural do Rio de

Janeiro – UFRRJ e coordenado pela professora Leonilde Servolo de Medeiros. Disponível em: https://nmspp.net.br/.

[5] Disponível em: https://assessoriajuridicapopular.blogspot.com

[6] Página virtual na qual diversos livreiros, sebos e livrarias de todo o país anunciam seus acervos para venda.

[7] Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – Memórias Reveladas. O acervo é ligado ao Arquivo Nacional, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, e foi implantado a partir de 2005 dentre os esforços de se reunir e publicizar informações dos órgãos de Estado no período da ditadura. Mais informações disponíveis em: http://memoriasreveladas.gov.br.

[8] Fundo Serviço Nacional de Informações – SNI. Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – “Memórias Reveladas”. Disponível em: http://memoriasreveladas.gov.br/. Código: br_dfanbsb_v8_mic_gnc_aaa_87063499_d0001de0001. Acesso em: 15 set. 2019.

[9] Os assuntos recebiam nas comunicações do SNI diferentes gradações de sigilo: Ultrassecreto, Secreto, Confidencial e Reservado. Todos os informes dedicados a reportar e processar os dados sobre os tribunais de opinião de interesse na pesquisa são considerados Confidenciais. Qualquer oficial das Forças Armadas ou servidor civil do SNI era competente para atribuir este grau de sigilo aos documentos como informes, relatórios, ofícios, apreciações, memorandos, entre outros. Para o expediente de vigilância, são confidenciais os “assuntos cujo conhecimento por pessoa não autorizada possa ser prejudicial aos interesses nacionais, a indivíduos ou entidades ou criar embaraços administrativos” (ISHAQ; FRANCO; SOUSA, 2012, p. 67).

[10] Fundo Serviço Nacional de Informações – SNI.  Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – “Memórias Reveladas”. Disponível em: http://memoriasreveladas.gov.br/. Código: br_dfanbsb_v8_mic_gnc_aaa_87063499_d0001de0001. Acesso em: 15 set. 2019.

[11] Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP) – Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade (CPDA), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Código: Asorg.CAMF.tncl.u.

[12] O TPP foi fundado em 1979 por parte das organizações e indivíduos que realizaram o Tribunal Russel, consolidando como uma instância internacional de tribunal de opinião em atividade até os dias atuais.

[13] Fundo Serviço Nacional de Informações – SNI.  Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – “Memórias Reveladas”. Disponível em: http://memoriasreveladas.gov.br/. Código: BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_AAA_87062046_d0001de0001

[14] Jornal do Brasil de 13 de maio de 1987, p. 8; e Correio do Brasil de 14 de maio de 1987, p. 12.

[15] Trabalhador rural e então dirigente do STR de Carmo do Rio Verde, estado do Goiás (GO). Foi assassinado em 23 de outubro de 1985 com cinco tiros à queima roupa. Nativo era também secretário rural da CUT, e militante do Partido dos Trabalhadores. Seu assassinato teve como causa um conflito entre posseiros e uma cooperativa de usinas de cana-de-açúcar (CARNEIRO; CIOCCARI, 2011, p. 250).

[16] Presidente do STR de São Francisco, estado de Minas Gerais (MG), assassinado em 16 de dezembro de 1984.

[17] Padre Josimo era coordenador da CPT no município São Sebastião do Tocantins (no atual estado do Tocantins), na região do Bico do Papagaio, e foi assassinado em 10 de maio de 1986 em Imperatriz, estado do Maranhão (MA), na entrada da sede local da CPT (CARNEIRO; CIOCCARI, 2011).

[18] Trata-se da repressão violenta pela polícia militar de uma greve de trabalhadores boias-frias (como são chamados os assalariados temporários que trabalham no corte da cana no interior do estado de São Paulo) na cidade de Leme, estado de São Paulo (SP), que resultou em duas mortes e 24 pessoas feridas, em 11 de julho de 1986.

[19] Fundo Serviço Nacional de Informações – SNI.  Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – “Memórias Reveladas”. Disponível em: http://memoriasreveladas.gov.br/. Código: BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_PPP_87009688_d0001de0001

[20] Advogado, assassinado em 22 de setembro de 1977 em Santa Maria da Vitória-BA. Eugênio e sua esposa, Lúcia Lyra, advogavam para a Federação dos Trabalhadores Rurais – Fetag do estado da Bahia, atuando na região de Santa Maria da Vitória defendendo trabalhadores rurais e posseiros em causas coletivas envolvendo grilagem de terras na região.

[21] Presidente do STR de Alagoa Grande, estado da Paraíba (PB), assassinada em 12 de agosto de 1983, na porta de sua casa, após ter sofrido ameaças e agressões motivadas pela sua atuação em defesa dos trabalhadores contra latifundiários, senhores de engenho e usineiros da região do Brejo Paraibano.

[22] Em 27 de setembro de 1985, a mando dos fazendeiros Marlon Lopes Pidde e João Lopes Pidde, três pistoleiros armaram emboscada e assassinaram cinco trabalhadores rurais: Manoel Barbosa da Costa, José Barbosa da Costa, Ezequiel Pereira da Costa, José Pereira de Oliveira e Francisco Oliveira da Silva.

[23] Em 16 de março de 1984, por ordem dos fazendeiros Paulo Feitosa e Gumercindo Ferraz, cinco pistoleiros mataram barbaramente o trabalhador rural João Celestino Costa, seu filho de 12 anos, Adailton Celestino da Costa, e sua esposa, Maria José Santos, que estava grávida de três meses.

[24] Jornal da Agência Ecumênica de Notícias (Agen), edição no 164, 10 de agosto de 1989. Fundo Serviço Nacional de Informações – SNI. Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – “Memórias Reveladas”. Disponível em: http://memoriasreveladas.gov.br/. Código:  BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_EEE_89022388_d0001de0002.

[25] Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP). Código: Asorg.CAMF.tncl.u

[26] Presidente do STR de Brasileia-AC, assassinado em 21 de julho de 1980, por ordem de fazendeiros da região.

[27] Trabalhador rural, liderança de comunidades rurais em Eldorado-SP, Vale do Ribeira, estado de São Paulo (SP), foi assassinado em 3 de junho de 1982 com seu padrastro (não identificado) por ordem de um grileiro que tentava expulsar as famílias de posseiros na região (CARNEIRO;e CIOCCARI, 2011, p. 210).

[28] Jornal da Agência Ecumênica de Notícias (Agen), edição no 164, 10 de agosto de 1989. Fundo Serviço Nacional de Informações – SNI. Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – “Memórias Reveladas”. Disponível em: http://memoriasreveladas.gov.br/. Código:  BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_EEE_89022388_d0001de0002.

[29] Documento do “Tribunal dos Crimes do Latifúndio Absolve 6 colonos condenados pelo Judiciário”, publicado pelo gabinete do deputado estadual Antônio Marangon, pelo Partido dos Trabalhadores no estado do Rio Grande do Sul (RS), presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 1992.

[30] No vocabulário jurídico trata-se de “pergunta que se formula para esclarecimento de questão que se debate”, cuja função é “esclarecer controvérsia ou procedência dos fatos alegados pelas partes [no processo]” (SILVA, 2003, p. 1143). No Júri Popular os quesitos dirigidos para os jurados são formulados pelo(a) juiz(a) que preside a sessão, e respondidos de forma sigilosa por cada um dos sete jurados que compõem o Conselho de Sentença. As respostas de cada jurado aos quesitos correspondem aos seus votos e o conjunto da votação constitui o veredicto do Júri, de acordo com o qual o(a) juiz(íza) presidente deverá proferir a sentença final do julgamento. Os quesitos devem ser elaborados com base nos fundamentos da acusação, no interrogatório do réu, nas teses sustentadas pela defesa, nos debates orais realizados em plenário e também com base na lei (MACHADO, 2009), de forma a aceitar tão somente duas possibilidades de respostas, sim ou não.

[31] Bicudo esteve à frente das investigações sobre o grupo de extermínio formado por policiais militares que atuava sob o comando do delegado do Departamento de Ordem e Política Social (Dops), Sérgio Fleury, em São Paulo. Grupos semelhantes já agiam dessa maneira desde os anos 1960 na cidade do Rio de Janeiro. A forma de ação destes grupos permanece enraizada na prática das policiais militares bem como das milícias, sobretudo nas periferias urbanas e rurais.

[32] Centro de Documentação e Imagem (Cedim). Instituto Multidisciplinar (IM) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. CPO Informa, de 30/5/1987, no 106. Cúria Diocesana de Nova Iguaçu. Pasta: 11. Pastoral Operária. Disponível em: http://rima.im.ufrrj.br:8080/jspui/handle/1235813/4353.

[33] O SNI foi extinto formalmente no ano de 1990. As atividades de vigilância, no entanto, não deixaram de ocorrer – agora sob o eufemismo de “inteligência” e sob outras siglas, menos associadas aos aparatos da ditadura. Após a extinção do órgão, é provável que todas as fichas e registros produzidos pelo SNI tenham sido transferidos para o Centro de Informações do Exército, onde permaneceram sigilosos (ZAVERUCHA, 2010). Parte da documentação que em 2005 encontrava-se sob custódia da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) foi recolhida para o Arquivo Nacional no ano de 2005, dando início ao processo de disponibilização pública dos registros produzidos e recebidos pelos órgãos do regime militar, e que hoje está à disposição no portal “Memórias Reveladas”.

[34] Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP) – Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade (CPDA), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Código: Asorg.CAMF.tncl.u.

[35] Centro de Documentação e Imagem (Cedim) – do Instituto Multidisciplinar (IM), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Identificador: http://rima.im.ufrrj.br:8080/jspui/handle/1235813/4508.  

[36] No Direito Penal a impronúncia indica decisão do juiz quando este não aceita a denúncia ou a queixa dada contra alguém por considerá-la não provada, seja porque não é convencido da existência do crime ou dos indícios de que o réu é o autor do fato. Declarada a impronúncia, o caso não é levado a julgamento, livrando da acusação aquela cuja autoria do crime não é provada (SILVA, 2003).

[37] Neste sentido, os testemunhos de trabalhadoras(es) rurais nos tribunais em pesquisa reforçam aspectos dos danos causados por pistoleiros/jagunços aos instrumentos e a animais essenciais para o trabalho e reprodução social camponesa; os efeitos das ameaças e assassinatos sobre as formas coletivas de trabalho; os efeitos de decisões judiciais de caráter liminar (provisório), proferidas em favor de grileiros ou grandes proprietários, que acabam dando pretexto para destruição de povoados inteiros; as relações de vizinhança e, em alguns casos, parentesco com jagunços/pistoleiros que trabalham para grandes proprietários, entre outros motivos.

[38] Esta questão, que ainda pode ser aprofundada, é inspirada nas provocações de Ayoub (2020). A identificação dos “casos exemplares” da violência no campo, da forma como realizado nos tribunais populares em pesquisa, contrasta com a discussão proposta por Ayoub acerca das categorias particulares pelos quais os moradores de uma dada comunidade rural referem-se aos fatos ocorridos em conflito. A partir de trabalho empírico, a autora percebe que o vocabulário particular utilizado pelos que vivenciam o conflito é distinto das concepções de “violência” e “crime” que prevalecem no Direito.

[39] Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP) – Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade (CPDA), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Código: Asorg.CAMF.tncl.u.

[40] Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP). – Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade (CPDA), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Código: Asorg.CAMF.tncl.u.