Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 17, 1-19, e023013, jan./dez. 2023 • ISSN 1984-9834
Artigo original • Revisão por pares • Acesso aberto
Desafios e métodos para estudar o patronato rural: a experiência no Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo – CPDA/UFRRJ
Challenges and methods to study rural patronage: the experience in the Research, Documentation, and Reference Center on Rural Social Movements and Public Policy – CPDA/UFRRJ
Elisandra Galvão
Resumo Este artigo aborda as dificuldades que envolvem a pesquisa sobre o patronato rural brasileiro. Ele foi baseado no trabalho realizado para a tese de doutorado A política na CNA: organização, mobilizações e inserções do patronato rural no Estado. O eixo da reflexão envolve a familiarização com as fontes, a elaboração de novas questões para o aprofundamento da problemática proposta e a definição da metodologia adotada. É dada ênfase especial ao período de investigação no Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP), que se consolidou como um centro de documentação na área de estudos da sociologia rural depois de 2003. O espaço, ligado à linha de pesquisa movimentos sociais do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ), possibilitou o acesso a entrevistas com lideranças de organizações de representação dos empresários rurais, a clipagens de notícias e a boletins produzidos por sindicatos e movimentos sociais dos trabalhadores rurais. Estes documentos foram centrais para a definição do objeto de estudo da tese e a estruturação de parte do trabalho de campo. O objetivo foi discutir o uso e a reapropriação destes materiais, em diferentes fases, e expor os avanços alcançados. Palavras-chave: patronato rural, Confederação Nacional de Agricultura, NMSPP, ditadura militar, movimentos sociais no campo. Abstract This article addresses the difficulties involved in researching Brazilian rural patronage. It is based on the work done for the doctoral thesis Politics in the CNA: organization, mobilizations and insertions of rural employers in the state. The axis of the reflection involves the process of familiarization with the sources, the elaboration of new questions for the deepening of the proposed problem and the definition of the adopted methodology. Special emphasis is given to the period of investigation at the Centre for Research, Documentation and Reference on Social Movements and Public Policies in the Countryside (NMSPP), which consolidated itself as a reference in rural sociology studies after 2003. The center is linked to the research on social movements of the Graduate Program in Social Sciences in Development, Agriculture, and Society (CPDA/UFRRJ). It enable access to interviews with leaders of organizations of rural entrepreneurs and material such as news clippings and bulletins produced by unions and social movements of peasants. These documents were central to the definition of study object of the thesis and to structure the stages of the research. The objective is to discuss the various uses of these materials, at different times, and expose the advances achieved.. Keywords: rural patronage, National Confederation of Agriculture, NMSPP, military dictatorship, rural social movements. | Submissão: Aceite: Publicação: |
Citação sugerida GALVÃO, Elisandra.. Desafios e métodos para estudar o patronato rural: a experiência no Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo – CPDA/UFRRJ. Revista IDeAS, Rio de Janeiro, v. 17, p. 1-19, e023013, jan./dez. 2023. Licença: Creative Commons - Atribuição/Attribution 4.0 International (CC BY 4.0). |
Introdução
A reflexão proposta neste artigo tem o objetivo de discutir o uso e a reapropriação de documentos diversos, material jornalístico, sindical, entrevistas e bibliografia especializada que fazem parte do acervo do Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP), que é um dos espaços de pesquisa do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). A abordagem feita tem dois eixos. O primeiro é voltado para apresentar o método usado, em diferentes fases da pesquisa de doutorado no CPDA/UFRRJ, para trabalhar com as fontes desse acervo. O segundo buscou aprofundar o debate sobre os desafios para estudar o universo do patronato rural.
A opção por discutir especificamente a metodologia com a qual trabalhei para a tese de doutorado (GALVÃO, 2020) poderá auxiliar a estudantes que estão iniciando suas investigações sobre o patronato rural ou outros segmentos da classe dominante do Brasil ou de outros países da América Latina. Além de facilitar a estruturação ou reelaboração da problemática e questões de pesquisa e contribuir para as discussões de pesquisadoras e pesquisadores que me antecederam e daquelas(es) que são minhas(meus) contemporâneas/os.
Era outono no Rio de Janeiro quando tive o primeiro contato com uma liderança do patronato rural ligada à Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Em junho de 2014, visitei a sede da Federação da Agricultura, Pecuária e Pesca do Estado do Rio de Janeiro (Faerj) para entrevistar Rodolfo Tavares, seu presidente há mais de 20 anos. A Faerj, criada em 1951, é uma das federações que integram o sistema sindical da CNA, o objeto de estudo da minha tese. A partir desta entidade patronal, estudei a relação dos empresários rurais brasileiros com o Estado, dando ênfase aos períodos da gênese da Confederação e a sua atuação nos anos dos primeiros governos da ditadura empresarial-militar, as décadas de 1960 e 1970.
Na Faerj, a secretária se certificou de que eu era pós-graduanda de uma universidade pública e confirmou o agendamento de uma hora de entrevista com Rodolfo Tavares. Ele, um homem branco, sexagenário, começou a conversa com certa desconfiança perguntando, novamente, se eu era da UFRRJ. Porém, à medida que recordava momentos de sua trajetória pessoal e de trabalho, ficou mais à vontade e animado para falar do agronegócio, principalmente da pecuária e da fruticultura, setores nos quais atua, e de sua inserção em instâncias de representação patronal. Fez questão de explicar que sua “classe social” – há uma identidade de classe em torno deste termo, usado tanto por Rodolfo Tavares como por outras lideranças do agronegócio com quem conversei ao longo do meu trabalho de pesquisa – era conservadora e que o patrimônio que tinham não se transferia pela internet, não se carregava no bolso. Era terra! E para garantir o direito de propriedade privada, os empresários rurais precisavam do Estado organizado e do poder público. Isto os tornava, naturalmente, conservadores, pontuou. Esta era sua visão na conjuntura política na qual nos encontrávamos. Nossa reunião, que inicialmente deveria ser mais curta e pontual, se estendeu até o final da tarde. Saí da Faerj com a promessa de que teria acesso a documentos da federação e a atas de reuniões, quando Rodolfo Tavares fez parte do quadro da CNA. Fiz novos contatos com a secretária para poder ir ao outro espaço da federação onde os documentos eram guardados, na cidade de Niterói (RJ). Entretanto, não houve uma abertura concreta para uma visita ou a disponibilização de qualquer documento do período que me interessava. Foi então que me deparei com o problema do acesso, uma dificuldade enfrentada por muitas pesquisadoras e pesquisadores que investigam a atuação econômica e política dos empresários rurais e de outras frações da classe que concentra riqueza e poder, sejam pessoas físicas, instituições ou empresas.
Tal problema ficou mais explícito naquela ocasião em que tentei retornar à Faerj e reapareceu quando fui a outros estados do país em busca de documentação sobre a CNA, o sindicalismo e o associativismo patronal. Como então achar uma solução para esse obstáculo e fazer a tese? A primeira opção foi buscar bibliografia e fontes documentais primárias, secundária ou terciárias sobre o patronato rural no NMSPP do CPDA, onde estava matriculada[1]. Este espaço foi escolhido porque possui um acervo variado sobre as diferentes organizações e formas de mobilização social que envolvem questões centrais para o meio rural brasileiro, os métodos de organização dos trabalhadores rurais e do patronato rural.
Os materiais localizados no NMSPP, como as séries Lideranças e Dirigentes de Organizações Sindicais Patronais, Lideranças e Dirigentes de Organizações não Sindicais Patronais, Produtores Rurais, Organizações Patronais, Sindicalismo Rural, Estado e Repressão, Estado e Políticas Públicas, Pré-1964 e clipagens de matérias jornalísticas, permitiram reelaborar meu projeto de tese, definir melhor meu objeto empírico de pesquisa e estruturar a metodologia que utilizaria para suprir a falta de acesso a documentos nos próprios órgãos patronais, ou seja, as fontes primárias tanto nas federações como na CNA. As séries de documentação do acervo do núcleo mais relevantes para minha pesquisa foram as que continham as entrevistas com lideranças do agronegócio e representantes de associações patronais cedidas por professores e pós-graduandos, as anotações de outros pesquisadores que se interessam pelo patronato rural, e os boletins produzidos por entidades sindicais diversas e movimentos sociais, especialmente dos trabalhadores(as) rurais. Estes permitiram conhecer os conflitos que envolvem suas lutas por direitos, o acesso à terra via reforma agrária e os embates com os empresários rurais.
Além do problema do acesso, outro que atravessou o trabalho de campo ocorreu no momento em que iniciei as entrevistas com algumas personalidades ligadas à CNA e com ministros de Estado do período da ditadura. O desafio que se apresentou foi o de como contatá-los, abordar questões que envolviam a Confederação nos anos da ditadura e estar junto e, ao mesmo tempo, manter uma “distância justa” (AVANZA, 2008) durante as distintas fases da pesquisa. Esse paradoxo causou uma “intimidação” durante as inserções em seus espaços, sobretudo quando fiz uma imersão mais longa na sede da CNA, em Brasília (DF). Mas foi nesse estágio que encontrei caminhos para contornar o desafio. Constatei que a boa forma para chegar até as(os) entrevistadas(os) é por meio das Secretarias de seus locais de trabalho ou Assessorias de comunicação e que preparar, previamente, o roteiro das entrevistas ou questionários nos dar mais segurança para realizar as entrevistas. Além disso, comecei a encarar questões como a de diferenciar a linguagem do patronato rural daquela que seria minha narrativa acadêmica – sem deixar que a primeira se confundisse com a segunda, o que é comum, às vezes, no processo de imersão e trabalho com documentos corporativos; percebi a necessidade de checar informações e as contrapor com a versão de outras fontes e atores sociais; e a colocar indagações ao ler e analisar documentos. Isto ajudou a dissolver aquele receio ante atores com posições políticas diferente das minhas, a construir e manter a “distância justa” e a compreender melhor a distinção entre um objeto de pesquisa empírico – feito com base em questionários, pesquisas estatísticas, trabalho em arquivos, entre outros – e um objeto teórico – baseado na abstração e na evolução do pensamento teórico (LABÈRE; BOUTILLIER; D’ALLONDANS; UZUNIDIS, 2012). Minha escolha foi pela primeira modalidade, mas sem esquecer o que ensina Beaud (2006, p.11): “uma boa tese, uma boa pesquisa, implica o equilíbrio justo entre teoria e empirismo”. A decisão foi motivada pelo material encontrado no núcleo, principalmente as entrevistas e notas de pesquisa relacionadas à revista Gleba, da CNA – feito há um par de décadas antes da minha pesquisa, que colocaram em evidência a relevância do papel político da CNA tanto no passado como no presente.
Para abordar este conjunto de questões, este artigo foi organizado em duas partes. A primeira apresenta o corpus documental trabalhado no NMSPP por pesquisadoras e pesquisadores que me antecederam em diferentes épocas e discute como a fase de levantamento de fontes foi fundamental para a preparação e redação do plano de trabalho para as etapas de pesquisa e plano de redação da tese. O foco é a metodologia que guia tanto a reflexão teórica como o trabalho de campo, quando se realiza enquetes, entrevistas ou estudo de uma realidade social, e trabalho sobre os materiais – estatísticos, arquivos, textos, discursos (BEAUD, 2006). A segunda parte aborda uma questão comum para a maioria dos que estudam a classe dominante e seus sindicatos, fundações ou empresas, o acesso a documentos. Também trata das formas possíveis de superar este obstáculo quando o contato com as fontes primárias é dificultado ou limitado.
Material dos que pesquisaram antes: contribuições para definição da problemática e da metodologia
O acesso às entrevistas com lideranças patronais em contextos de pesquisa diversos do nosso, depositadas no NMSPP e produzidos antes do nosso estudo – este item aborda especificamente esse corpus documental, e ajudou a conhecer o perfil de algumas lideranças da CNA e porta-vozes do patronato rural com fortes ligações com a entidade. Também permitiram uma familiarização mais profunda com a linguagem que reforça sua identidade de classe, os discursos, argumentos e temas que refletem seus interesses econômicos e políticos. Isto permitiu uma preparação melhor para as entrevistas que foram realizadas e a planejar estratégias para abordar temas espinhosos como a atuação da CNA durante a ditadura empresarial-militar, os conflitos internos e a questão agrária.
O problema do acesso e a leitura desse material motivou a definir como método a realização de entrevistas semiestruturadas em todos os estágios da pesquisa. Depois de selecionar o material do NMSPP, foi feito um levantamento prévio sobre a biografia e o trabalho dos que ocuparam cargos na Diretoria da CNA e dos ministros de Estado durante a ditadura empresarial-militar que integraram também a entidade ou mantiveram relações com suas lideranças. Primeiramente, foram selecionados, na obra 1964: a conquista do Estado – Ação Política, poder e golpe de classe (DREIFUSS, 1981), os nomes de empresários ligados à Confederação e que participavam do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad). Foi considerada a inserção do patronato rural no Ipes porque a organização dos interesses multinacionais e associados se deu no processo de formação de uma elite orgânica centrada na frente de ação formada pelo Ipes e pelo Ibad – o complexo Ipes/Ibad. A história destes dois institutos expõe a forma pela qual “a elite orgânica da burguesia multinacional e associada evoluiu de um limitado grupo de pressão para uma organização de classe capaz de uma ação política sofisticada, bem como o modo pelo qual ela evoluiu da fase de projetar uma reforma para o estágio de articular um golpe de Estado” (DREIFUSS, 1981, p. 161-162). Conforme a historiografia e a literatura das ciências sociais, a ditadura empresarial-militar fragmentou o terreno social e político em prol dos interesses da expansão capitalista no Brasil, especialmente por meio da modernização da agricultura (DREIFUSS, 1981; BANDEIRA, 1978). Modelo que prosseguiu nos governos neoliberais, na nova fase democrática a partir de meados da década de 1980, cujo discurso modernizador acentuava a dominação tecnocrática e autoritária iniciada no processo de “modernização conservadora” da ditadura (CHAUI, 2014), ou “modernização dolorosa” nas palavras de Graziano (1982).
Num segundo momento, houve ampliação da busca iniciada no NMSPP para mapear os nomes de todos os que passaram pela Diretoria da CNA em arquivos da Sociedade Nacional de Agricultura (SNA)[2], da Embrapa, das bibliotecas públicas de referências, como a Biblioteca Nacional, e dos centros de documentação de universidades diversas, tanto no Brasil como na França, onde foi realizado o estágio de doutorado. Nesse período, de integração nas atividades do Laboratoire Dynamiques Rurales, na Universtité Toulose – Jean Jaurès, em Toulouse, foi possível explorar a problemática e dar continuidade à reflexão sobre o instrumental teórico e metodológico a ser mobilizado – trabalho feito com Martine Guibert, supervisora de estágio doutoral – e nos cursos e eventos frequentados. Já a participação nos encontros promovidos pelo Groupe de Recherches Interdisciplinaires sur le Politique (École Normale Supérieure – ENS-Paris), coordenado pelo professor Michel Offerlé, permitiu discutir sobre as formas para lidar com o problema de acesso às informações e os limites do material trabalhado, quando o acesso a fontes é possível e nos deparamos com a narrativa do próprio patronato. Portanto, a inserção em discussões tanto nos grupos na UFRRJ, como no exterior foi valiosa porque permitiu pensar nas melhores formas de comparar o material coletado ao longo da pesquisa e sistematizá-lo conforme a questão central da tese – adiante, é comentada na sua relação com a problemática.
Antes da formação complementar em outro país, parte da pesquisa foi feita naquelas bibliotecas. Nestes locais foi possível acessar trabalhos pioneiros sobre a CNA, outras organizações patronais, e que problematizam a mobilização patronal na América Latina. Entre eles estão as obras de Goméz (1986, 1987), Mendonça (1990, 2010), Baltar (1990), Esteves (1991), Buzanello (1991), Silva (1992), Leal (2002), Bruno (2002), Heinz (1996), Ramos (2006, 2011), Tavares (2012), Andrade (2013); as publicações A Lavoura e a Gleba; e o livro comemorativo CNA Brasil – 50 anos (1951-2001), que apresenta os presidentes da Confederação da gestão de Mário de Oliveira, iniciada em 1951, até a de Antônio Ernesto de Salvo, no período 1999-2002. A importância da Gleba foi percebida durante o período de contato com os arquivos das bibliotecas, nos quais estavam depositados diferentes números de suas edições, e com os documentos do Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Ruralismo, Agronegócio e Relações de Poder (Narup) que, atualmente, tem seu acervo integrado ao NMSPP, e está sob a coordenação da professora Regina Bruno.
Da perspectiva sociológica, a escolha daquela bibliografia teve o propósito de elencar e analisar os fenômenos sociais nos quais a CNA teve protagonismo. Da ótica histórica, o objetivo foi selecionar os episódios que marcaram a concepção e o processo de instalação da Confederação e sua transformação em sindicato. O conjunto de fatos destacados e discutidos buscaram chamar a atenção para a linha de continuidade que atravessa os três momentos de organização da representação dos interesses patronais rurais e as formas de articulação política por meio da Confederação. Fez parte do escopo da tese mostrar que a CNA foi estruturada num processo que envolveu três fases: a primeira, mais seminal, quando foi idealizada pela SNA com o nome de Confederação Rural Brasileira (CRB), que foi do período de 1920 até 1960; a segunda ocorreu a partir de 1964, quando teve início a sua reestruturação de associação civil para sindicato patronal e mudou o nome para Confederação Nacional da Agricultura; a terceira se deu na década de 1990, quando teve mais reconhecimento pelo seu papel representativo e um relevante peso político para o agronegócio brasileiro. Foi um tempo em que a CNA era vista por suas lideranças como mais profissional e organizada, e quando começou a investir numa maior inserção internacional, em debates sobre comércio exterior e produtos que interessam ao mercado global.
O acesso às fontes primárias, como explicitado, não foi fácil. Na sede da entidade, não estavam disponíveis a documentação referente à atuação da entidade no século XX – com exceção de um documento da década de 1970 e informativos dos anos 1990 em diante. No período de pesquisa, na biblioteca mantida na sede da CNA, foi possível notar que forma de contornar a questão do não acesso, deveria incluir entrevistas com os funcionários que tinham mais tempo de trabalho na CNA e com alguns empresários que passaram por sua Diretoria em diferentes épocas. Para cada um deles foi elaborado um questionário, com perguntas abertas semiestruturadas referentes à trajetória pessoal e de trabalho, à relação da CNA com o Estado, à modernização da agricultura, às mobilizações para defender interesses, às relações com outras entidades patronais e às políticas públicas que julgavam mais importantes para o setor do qual eram porta-vozes. Estes pontos foram pensados a partir da problemática e da questão central da tese.
Os métodos apresentados permitiram a compreensão sobre como a CNA se formou e se estabeleceu, a investigação de sua prática política, o mapeamento sobre sua inserção em espaços diversificados e a análise da relação mantida com o Estado brasileiro. Esta última foi a problemática tratada na tese. A partir dela surgiu a questão central que norteou seus capítulos: quais as implicações dessa relação na política agrícola e agrária brasileira? Então, a reflexão apresentada em cada um foi motivada por indagações derivadas da problemática e da questão central: 1) Como o capital social[3] do patronato rural é potencializado através da organização formal? 2) Em quais condições as demandas da CNA foram ignoradas ou atendidas integralmente pelos governos até 1964? 3) Como a argumentação de modernizar a agricultura durante a ditadura empresarial-militar institucionalizou interesses de setores do patronato rural para a política agrária e agrícola? Estas perguntas dão organicidade aos três níveis de análise sobre as relações entre sociedade civil[4] e sociedade política (GRAMSCI, 2007) – uma entidade patronal e o Estado autoritário – e a ação política dos dominantes como uma classe que se constitui na relação com outros agentes[5], seja pela identidade comum ou pela oposição e conflitos. Além disso, buscam identificar, no âmbito da CNA, os atores aos quais se dirige e com quem, de fato, dialoga, e quais grupos e ramos da agricultura tinham mais força política internamente. A análise da articulação dos empresários rurais, por intermédio da CNA, para pautar políticas públicas para o setor no qual atuam está situada na vertente dos estudos sobre os distintos atores da classe dominante brasileira. As formas pelas quais os ricos contestam e se mobilizam em defesa dos seus interesses expõem, conforme mostram os estudos Offe e Wiesenthal (1984) e os da sociologia da dominação e da sociologia da burguesia, o trabalho incessante da classe dominante pela legitimação e restabelecimento de hierarquias sociais no processo de acumulação de riquezas, poder e prestígio (PINÇON; PINÇON-CHARLOT, 2003).
A opção pelas entrevistas semiestruturadas foi uma das formas de preencher lacunas e de cotejar informações coletadas na bibliografia citada, nos documentos e nas publicações oficiais da CNA, além do que divulgava nos grandes jornais da época. Essa foi a metodologia que, com o ferramental teórico escolhido, norteou a estruturação dos capítulos da tese.
A partir dos levantamentos no NMSPP e da bibliografia utilizada foram selecionados como entrevistados o ex-ministro da Fazenda, Planejamento e Agricultura, Antônio Delfim Netto; o presidente da SNA, Antonio Mello de Alvarenga Neto; o ex-ministro da Agricultura e ex-presidente da CNA, Alysson Paulinelli; o ex-vice-presidente da CNA e presidente da Federação da Agricultura do Estado de Pernambuco, Pio Guerra; o presidente da Faerj Rodolfo Tavares; e o membro da Diretoria da CNA e presidente do Instituto Nacional do Desenvolvimento Agrário, Eudes de Souza Leão Pinto. Também foi incluído o atual presidente da SNA para obter uma melhor compreensão sobre a visão que tinham da Confederação e se alguma relação ou solidariedade era ainda mantida entre as duas agremiações. A maioria dos agendamentos das entrevistas foi realizada por meio das secretárias das lideranças e entidades ou de suas Assessorias de Comunicação. Alguns contatos foram obtidos por meio da universidade de origem do porta-voz, mas isso só ocorreu nos casos daqueles que lecionaram nesses estabelecimentos. As entrevistas foram essenciais porque permitiram observaras contradições internas, as disputas e os conflitos entre grupos dentro da própria Confederação.
Já a participação na pesquisa Conflitos por terra e repressão no campo no estado do Rio de Janeiro possibilitou, além do acesso ao material sobre a CNA, produzido pelas agências dos governos militares e organizados no acervo Memórias Reveladas do Arquivo Nacional, as condições materiais para realizar entrevistas no Rio de Janeiro, Brasília (DF), São Paulo e Pernambuco. Em Brasília, o trabalho de pesquisa ocorreu, principalmente, na Biblioteca da Faculdade de Tecnologia CNA, na sede da entidade. Lá ficou evidente que o conjunto documental que interessava, como atas de reuniões e relatos de congressos, registros de mobilizações e demais encontros entre 1950 e 1980, não estava disponível na CNA. A maior parte dos funcionários – de diferentes departamentos – informou que “não estavam depositados lá”. No entanto, a inviabilidade de acessá-los foi compensada pela ajuda da Assessoria de Comunicação da entidade, que intermediou e forneceu contatos de porta-vozes para entrevistas, e pela relação estabelecida, informalmente, com funcionários do setor administrativo.
Na CNA, foi contatado ainda que a hierarquia funcional sindical está materializada no prédio da sede. Os setores da base hierárquica da administração estão localizados no térreo e no subsolo 1. Enquanto o presidente da entidade e demais diretores têm salas no andar mais alto, a Assessoria de Comunicação ocupa o andar logo abaixo, e a biblioteca e as salas da Faculdade CNA ficam no subsolo 1. A divisão aparece no Manual de Uso do prédio da CNA e mostra a arquitetura do edifício e as funcionalidades de cada espaço. Foi possível circular livremente entre o subsolo e o térreo. No entanto, o acesso aos demais andares só era possível após agendamento prévio de entrevista com porta-vozes da entidade, sempre por meio da Assessoria de Comunicação.
A respeito dos documentos originais buscados não se pode afirmar se estavam guardados em outro espaço ou se foram “perdidos” na mudança da CNA do Rio de Janeiro para Brasília, na década de 1970 e, a seguir, nas três mudanças de prédio já na capital federal, como afirmaram os porta-vozes e os funcionários do setor administrativo. Durante as buscas de documentação na entidade, era comum a afirmação de que muitos documentos foram queimados durante a gestão do amazonense Flávio da Costa Brito. Há relatos e registros de corrupção na própria CNA e sobre os momentos em que agentes das Forças Armadas chegaram a fazer vistorias em sua sede, nos anos 1980, para apurar denúncias de membros da própria CNA contra Flávio Brito – estes fatos foram lembrados por algumas lideranças e funcionários da CNA entrevistados.
Superação do problema do acesso às fontes e avanços
A tese de doutorado consiste num trabalho de pesquisa. E não há pesquisa sem método, ensina Beaud (2006). Definir a metodologia permitiu um melhor trabalho tanto com os entrevistados como com a documentação encontrada pouco a pouco. E, à medida que ampliava o horizonte bibliográfico, a leitura de um documento permitiu o acesso a outros. Assim, houve a descoberta de novas fontes e trabalhos com temáticas que tangenciaram o da tese. Alguns aspectos sobre as novidades encontradas e sua relação com o material comentado no item anterior. Estabelecer uma vinculação entre um corpus documental diverso possibilitou permite a construção de novos caminhos para a pesquisa.
Também no NMSPP foram encontradas as notas sobre uma parte do conteúdo da Gleba – revista oficial da CRB/CNA voltada para difundir a ideologia e os ideais dos porta-vozes da Confederação – feitas pela professora Leonilde Medeiros. Isto levou a localização dos números da publicação de 1955 a 1973 e seleção , antecipadamente, de editorias e temas relevantes para a problemática e a questão central da tese. Ambas foram modificadas durante os momentos de ida e retorno do campo. Este é um processo normal, pois a problemática e a questão central estão intimamente ligadas. Como define Beaud (2006), a problemática é o conjunto construído, em torno de uma questão principal, das hipóteses de pesquisa e das linhas de análises que permitirão abordar o tema escolhido. Os ajustes feitos nela ajudaram a manter o foco da investigação nas formas sobre como os porta-vozes da CNA se articularam e colocaram demandas relacionadas às políticas agrícola e agrária para os governos militares.
Ainda durante a discussão sobre a problemática nas reuniões de orientação com Regina Bruno e Leonilde Medeiros, outros trabalhos, convergentes à pesquisa, foram selecionados em fundos de outras instituições. Dentre eles, os que tratavam da representação patronal rural, da questão agrária, dos movimentos sociais no campo, da modernização da agricultura e da ditadura militar. Os estudos voltados para essas temáticas, juntamente com o primeiro bloco bibliográfico selecionado no NMSPP e, depois, no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes e em sítios na internet das universidades brasileiras, foram essenciais para a construção de uma abordagem original para a problemática tratada e elaboração de um plano de trabalho consolidado para cada etapa da pesquisa.
Diante das dificuldades enfrentadas quanto ao acesso a fontes primárias, um terceiro momento do calendário de trabalho envolveu retornos à Biblioteca Edgard Teixeira Leite[6]. Nela estava a maior parte dos números da revista Gleba. Mas, como a coleção estava incompleta, outra parte foi pesquisada na Embrapa Solos e na Biblioteca Nacional – onde havia formas de consultar quais instituições no país tinham fundos arquivísticos contendo a revista. Também foram percorridas, em busca de números que que faltavam, algumas federações da CNA. As coleções destas não estavam completas e houve casos em que as publicações foram para o lixo, como no caso da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Espírito Santo (Faes). Já a busca por fundos arquivísticos realizada de forma digital foi uma possibilidade nova, pois, em outras décadas, parte dos(as) pesquisadores(as) não puderam contar com algumas ferramentas digitais.
Na Gleba estavam a reprodução das fontes primárias que interessam: atas de reuniões internas, reprodução de discursos feitos em eventos na sede da CNA e de pronunciamentos públicos de porta-vozes, comunicados oficiais, relatórios encaminhados ao governo federal e artigos com posições sobre temas relevantes para a tese. A revista foi criada em 1955, quatro anos depois da oficialização da CRB[7]. Sua proposta era levar aos ruralistas brasileiros ensinamentos e mensagens de confiança capazes de promover a elevação dos índices de produção e produtividade agrícola e, em consequência, a aceleração do ritmo do processo de desenvolvimento econômico do Brasil. Esta era uma visão patronal. Seu público-alvo era a “família ruralista” – termo usado por um dos seus mais notórios presidentes, o pecuarista paulista Íris Meinberg – e os dirigentes do país no que se refere aos interesses dos empresários rurais, ou seja, aqueles que ocupavam cargos públicos eletivos e funcionários de repartições consideradas relevantes para o setor agropecuário.
Meinberg, no primeiro editorial, diz que a revista pretendia ser “a voz da maioria da população realmente produtora” (Gleba, jul. 1955, p. 1). A revista era enviada às federações patronais, aos sindicatos rurais, a embaixadas e consulados instalados no Brasil, às bibliotecas, às instituições do Estado e autoridades públicas, e aos veículos da imprensa, que costumavam publicar notas sobre os números recebidos e o conteúdo da edição. A Gleba era vendida em números avulsos e por meio de assinatura anual para seus leitores. Além disso, eram comercializados em suas páginas espaços para anúncio pago. Já a venda da publicação ocorria por meio das sucursais, instaladas em vários estados. A primeira foi instalada em São Paulo (SP), em agosto de 1955. Depois em Curitiba (PR) e Florianópolis (SC), Recife (PE) e Porto Alegre (RS).
Trabalhar com as fontes primárias reproduzidas na revista pôs, novamente, o desafio de manter a distância justa para desenvolver uma leitura crítica e pensar o contexto histórico no qual foram produzidas, sem perder de vista o cerne dos debates da época. A dificuldade ao lidar com veículos de comunicação corporativos ou institucionais, caso da Gleba e da Lavoura – a segunda analisada –, foi a de não deixar o texto da autora da tese se mesclar com a narrativa oficial da CNA. O trabalho fino consistiu em distinguir o que era sua propaganda sindical e desvelar o conjunto de ideias que buscava difundir sobre a importância de determinados temas. Desta forma, foi possível observar quais assuntos eram silenciados e as estratégias usadas para engajar o público em torno de seus interesses. Cada leitura das atas de reuniões, dos pronunciamentos, das falas em solenidades, das partes de relatórios reproduzidos, das cartas à imprensa, e de suas notícias próprias exigiu o esforço de formular as questões adequadas e checar afirmações e informações.
Durante a análise da Gleba pôde ser acompanhada, quando Meinberg deixou a direção da entidade em 1967, a sua reestruturação, a alteração da apresentação gráfica e da linha editorial, que deveria priorizar a “evolução tecnológica do mundo moderno” e os planos e programas dos órgãos oficiais e da iniciativa privada no universo da agropecuária. Além da criação de novas seções, como a relativa ao cooperativismo – assunto que interessava a Flávio Brito, o novo presidente. São novidades as sugestões para cuidar e aumentar a vida útil das máquinas agrícolas (tratores, cultivador, grade e arado de discos, dentes, aiveca e molas, semeadeira de trigo, colhedeiras, enfardadeira, condicionadora de feno, entre outras.) – símbolos da modernização da agricultura que ganharia muitos incentivos dos governos militares na década de 1970. Entre as novas colunas da revista surgiu o Painel Cooperativista, assinado por D’Almeida Guerra Filho. Nesse espaço apareciam os anúncios de novidades nos setores de café, trigo, milho híbrido, pesca, rações, pecuária leiteira e de corte, granjas e supermercado – a partir da fala de presidentes de cooperativas. Este era um conjunto de temas que teve visibilidade na revista. Já a questão agrária e os conflitos no campo, bastante pautados no pré-1964, sumiu de suas páginas depois de 1964.
A Gleba, em 1970, chegou a ter mais de 20 mil exemplares publicados. Mas, nessa década, também se nota dificuldades para conseguir novos assinantes, pois passou a ser constante o apelo, por meio de anúncios, para que os “ruralistas brasileiros” renovassem a assinatura e para obter novos assinantes, além de passar a ser vendida em bancas de jornais. Em 1971 houve chamada para sindicatos enviarem material para publicação. O teor dos anúncios e o constante apelo enaltecendo a publicação revelam as dificuldades para mantê-la:
Gleba, revista destinada ao proprietário rural, circula em todos os municípios do País, sendo lida por ministros, senadores, deputados, prefeitos e demais autoridades federais, estaduais e municipais. É enviada a federações, sindicatos e associações rurais, cooperativas agrícolas, agências do Banco do Brasil, dioceses, bibliotecas e escolas agrícolas, embaixadas e consulados, além de manter intercâmbio com vários países sobre assuntos de interesse dos ruralistas. Em face disso, os mais importantes agricultores e criadores do Brasil são, na quase totalidade, assinantes da GLEBA, cuja tiragem é de 25 mil exemplares mensais (Gleba, fev. 1971, p. 33).
A revista parou de circular depois de 1973, a última edição publicada reunia os números 216/217, referentes aos meses de outubro e novembro daquele ano. A CNA ficou sem veicular notícias sobre suas ações numa publicação própria até o segundo semestre de 1977, quando surgiu uma nova revista, Agricultura, a força verde, que durou até os anos 1980[8]. Na década seguinte, a Gleba ressurgiu em formato de boletim informativo.
A outra fonte de informação primária foi a revista A Lavoura, da SNA. A publicação possibilitou extrair mais informações sobre o surgimento da CRB em 1926. Esta publicação, nos anos 1940, passou a ser apresentada também como um veículo da CRB. Tal descoberta aconteceu no momento em que consultava materiais do NMSPP e do Narup – dois números da Lavoura tinham na sua capa o registro de ser uma revista das duas associações patronais. O novo caminho de leitura foi buscar nela tudo que se relacionava à Confederação. Isto resultou em encontrar mais atas de reuniões do seu período inicial.
Depois da leitura e fichamento das duas revistas, outro cotejamento de informações foi realizado por meio da leitura de publicações da imprensa. Os jornais e revistas selecionadas foram Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Correio Braziliense, O Estado de S, Paulo, O Globo, A Noite (RJ), O Cruzeiro, Diário Carioca, Jornal do Commercio, Diário de Notícias, Última Hora, Tribuna da Imprensa, entre outras mídias. Em momentos pontuais foram usadas publicações como O Movimento[9] , que trazia reportagens investigativas sobre movimentos radicais da extrema direita que surgiram no final de 1960, e veículos de comunicação regionais. A imprensa ajudou a suprir vazios de informações e, após a interrupção da Gleba, foi a principal fonte para acompanhar atividades e pronunciamentos públicos da CNA. Estas fontes foram essenciais para a elaboração de quadros com a minibiografia dos dirigentes da Confederação nas gestões de Mário de Oliveira e Alkindar Junqueira (1951-1953), Íris Meinberg (1954-1967) e Flávio Brito (1967-1987).
Outros materiais analisados foram os diários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que permitiram o mapeamento de temas que apareciam nos pronunciamentos de senadores e deputados que defendiam os interesses da CNA e/ou de ramos econômicos específicos de atuação do patronato rural. Neles foram identificados os projetos de lei e requerimentos de autoria daqueles presidentes da CRB/CNA que foram senadores e deputados. Estes dados possibilitaram aprofundar a discussão sobre a natureza da relação da CNA com o Estado.
Conclusões
Apesar dos desafios enfrentados, o conjunto de fontes apresentado possibilitou formular novas questões sobre o objeto empírico e deu subsídios para elaborar as entrevistas abertas semiestruturadas com os porta-vozes e demais personalidades ligadas à CNA. O caderno de campo e o registro fotográfico de pessoas e ambientes institucionais e residenciais foram outras ferramentas usadas para compor uma etnografia elementar sobre os atores sociais estudados. Registrar impressões e imagens sobre os espaços visitados e pessoas entrevistadas pode ajudar na abordagem pela qual se vai optar e a complementar o perfil institucional/sindical ou da classe social que interessa.
As fontes selecionadas possibilitaram elaborar a genealogia da CNA e a constatar que o movimento de organização do patronato rural que criou e estabeleceu grandes associações de representação patronal teve como catalisadores as transformações pelas quais passou o país e as crises da segunda metade do século XIX e do século XX. A pesquisa mostrou que a busca por mais união entre patronato – não apenas o rural –, o fortalecimento da dinâmica de suas relações e criação de novos espaços de representação são comuns nos cenários de crise e quando vêm ameaças ao poder que exercem e aos privilégios que detêm.
Já o problema de acesso a materiais não é uma exclusividade da CNA. É um desafio com o qual se deparam todas e todos que se dedicam a estudar as classes dominantes e suas instituições em diversos países. O estudo realizado mostrou que aquela dificuldade pode ser superada com um investimento no trabalho em arquivos diversos e, quando não há documentos disponíveis, se deve optar pela realização de entrevistas com os atores sociais que interessam para a problemática da investigação. Estabelecer uma “distância justa” desses atores, quando se estuda os empresários rurais, facilita discernir sua linguagem, termos e categorias das nossas. Além disto, permite colocar a nossa própria voz, que é determinante para o desenvolvimento de uma interpretação nova sobre o tema.
A elaboração de uma “cartografia de personagens e temas” propiciou, além de uma aproximação maior dos debates que interessava às lideranças da CNA, de suas federações e sindicatos, conhecer bem os perfis de porta-vozes, os discursos e os termos que utilizam para se referir a si mesmo e ao setor no qual atuavam, como “produtor rural”. Este termo remetia a uma imagem nos anos 1950, relacionada ao empresário rural que vive na fazenda e é o responsável pela produção agrícola do país; e a outra, nos anos 1990, que se refere ao empresário eficiente, empreendedor e conectado às novas tecnologias. Como se percebe, o termo foi ressignificado pelo próprio patronato rural. O objetivo era promover uma imagem do empresário rural não associada à devastação ambiental, ao uso de veneno nas plantações e à violência contra trabalhadores rurais e povos originários. Na fase da escrita, essa familiarização foi fundamental para separar o discurso patronal da narrativa desenvolvida em cada capítulo da tese.
A definição de iniciar o trabalho no NMSPP, onde há uma sistematização do acervo sobre patronato rural que não havia, por exemplo, no Portal de Periódicos da Capes, permitiu conhecer melhor os interesses e vertentes de pesquisa das orientadoras da tese e os percursos acadêmicos de outros pesquisadores que trabalharam com representação patronal no CPDA/UFRRJ. Portanto, a partir de experiências anteriores é possível verificar os métodos de pesquisa que podem funcionar ou não; e usar as entrevistas realizadas em outras pesquisas para desenvolver novas questões e abordagens para problematizar um objeto de estudo que é comum ou que mantém linhas de diálogo.
Outro ponto positivo da experiência no NMSPP, além de ter permitido a elaboração de entrevistas e a definição dos novos locais para a pesquisa documental e bibliográfica, foi o fato de haver pessoas trabalhando no local com conhecimento sobre o acervo e estarem disponíveis para auxiliar na pesquisa on-line e na presencial. Enquanto a maior dificuldade foi localizar materiais produzidos antes dos anos 2000 que estivessem digitalizados.
Como o foco da investigação nos materiais apresentados neste artigo foi a CNA e seus porta-vozes, os documentos merecem ainda uma análise mais acurada em pesquisas futuras, pois tanto as publicações corporativas como os arquivos da Câmara e do Senado têm um enorme potencial para contribuir para outros estudos e a elaboração de interpretações originais sobre as organizações e a mobilização do patronato rural. Investigações desse tipo permitem ver a materialização, na política, dos interesses do que, hoje, conhecemos como agronegócio.
Financiamento
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
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Elisandra Galvão Doutora em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/URRJ). Integra o Núcleo de Estudos e Pesquisa Ruralismo, Agronegócio e Relações de Poder (Narup/CPDA/UFRRJ), o Grupo de Trabalho Empresariado e Ditadura no Brasil (GTEDB), o Grupo de Estudos René Dreifuss (Gerd) e participa de atividades de pesquisa da Comissão Camponesa da Verdade. Atualmente trabalha na Fiocruz. E-mail: elis.galvao@gmail.com ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/0221869154251727 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9846-6065 |
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 17, 1-19, e023013, jan./dez. 2023 • ISSN 1984-9834
[1] O trabalho mais intenso de seleção, leitura e análise de documentos no NMSPP se deveu também a minha participação na pesquisa Conflito por terra e repressão no campo no estado do Rio de Janeiro (1946-1988). Este projeto, coordenado pela professora Leonilde Medeiros e financiado pela Faperj, permitiu que tivesse bolsa de doutorado. Seu relatório final subsidiou, em 2015, o trabalho da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio).
[2] Criada em 1897. Teve seu Estatuto formal copiado da Société des Agriculteurs de France (SAF), a primeira organização profissional agrícola francesa, fundada em 1867. A SNA foi a primeira agremiação do patronato rural com o fim de representar nacionalmente os interesses agrários, e reunia a elite agrária e política do país.
[3] Conceito de Bourdieu (1980) que se refere ao conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à possessão de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento, ou, em outros termos, o pertencimento a um grupo, como o conjunto de agentes que não são somente dotados de características comuns – suscetíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos, mas estão unidos, também, por ligações permanentes e úteis. Tais ligações são irredutíveis às relações objetivas de proximidade no espaço físico (geográfico) ou mesmo no espaço econômico e social porque são fundadas sobre as trocas inseparavelmente materiais e simbólicas cuja instauração e perpetuação supõem o reconhecimento da proximidade.
[4] Relação de força e relação de classe que não restringe o Estado ao conjunto de agências que atuam na Administração Pública, mas considera nele os aparelhos privados de hegemonia, como as associações da sociedade civil. Esta noção é a adotada na tese.
[5] Pensando a partir de Thompson (1966), que concebe classe como uma relação. Ele entende classe como um fenômeno histórico que unifica uma série de eventos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência quanto da consciência. Para o autor, classe não é uma estrutura nem uma categoria, mas algo que, de fato, acontece (e pode ser mostrado que aconteceu) nas relações humanas. Sua noção de classe está relacionada à noção de relação histórica e, nesta relação, estão envolvidas pessoas reais num contexto real.
[6] Faz parte da Escola Wencesláo Bello, unidade da Sociedade Nacional de Agricultura, situada no bairro da Penha, no Rio de Janeiro. É um campus educacional e ambiental com laboratórios, clínica veterinária e unidades de criação zootécnica (suinocultura, bovinocultura, avicultura, cunicultura e ranicultura). Oferece graduação em medicina veterinária e zootecnia.
[7] Nos primeiros anos, o quadro editorial da Gleba era composto por Íris Meinberg (Direção), Luiz Marques Poliano (redator-chefe/SNA), Fortunato Ferreira Guarita (gerente). Os redatores técnicos eram: Bem-Hur Raposo (agrônomo/SNA), Raul Renato Cardoso de Melo Filho (secretário-geral do Departamento de Cafeicultura da Federação das Associações Rurais do Estado de São Paulo) e J. M. Fonseca Lima (engenheiro agrônomo da Seção de Comercialização da Divisão de Economia Rural/Secretaria da Agricultura de São Paulo). Os colaboradores permanentes: Agostinho Monteiro (CRB, vice-governador e deputado federal pelo Pará), Alberto Ravache (SNA/CRB), Arthur Oberlander Tibau (CRB/Sociedade Fluminense de Engenheiros Agrônomos), Arthur Tores Filho (SNA/CRB), Geraldo Goulart da Silveira (SNA/CRB), João Maurício de Medeiros (SNA/CRB), José A. Vieira (SNA), Manoel Barros Ferraz (engenheiro agrônomo/Ministério da Agricultura), Sálvio Pacheco de Almeida Prado (SRB) e Waldemar Rupp (CRB, deputado estadual e federal da União Democrática Ruralista).
[8] Durante o período de pesquisa não foram encontrados os números impressos da publicação. Por isso, não foi possível identificar o ano em que a revista deixou de ser publicada. A coluna Agrária, do Jornal do Commercio (4/9/1978), informa que a Agricultura, a força verde era editada pela Guavira Editora. Um dos assessores da diretora da Guavira foi o coronel Francisco Boaventura, irmão do presidente da Itaipu Binacional, o general Costa Cavalcanti.
[9] Juntamente com O Pasquim e Opinião foi um dos jornais da imprensa alternativa mais importante durante a ditadura empresarial-militar. No seu grupo de colaboradores estavam Jacob Gorender, Moniz Bandeira, Fernando Henrique Cardoso, Perseu Abramo, Chico Buarque de Holanda, Francisco de Oliveira, entre outros.