Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade

Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 17, 1-21, e023006, jan./dez. 2023 • ISSN 1984-9834

Artigo original • Revisão por pares • Acesso aberto

Terra, mercadoria ou espaço de vida: reflexões sobre políticas públicas e a questão fundiária a partir do ‘Mutirão Campo Alegre’

Land, merchandise or living space: reflections on public policies and the land issue from the “Mutirão Campo Alegre”

Mônica Mendonça Delgado

Resumo

Há muito tempo, a transformação da terra em mercadoria e sua aquisição por uma parcela pequena da população evidenciam a ausência de prioridade da questão agrária para o Estado brasileiro, bem como a destinação de grande parte dos recursos públicos à modernização tecnológica das grandes propriedades. Na contramão, experiências coletivas persistem, resistindo, de modo geral, a longos processos de luta. Este artigo objetivou construir uma reflexão sobre políticas públicas no Brasil, por meio da análise das ações de regularização fundiária desenvolvidas em Mutirão Campo Alegre, processo que se arrasta há 39 anos. O esforço principal deste artigo é analisar a morosidade do processo de regularização fundiária buscando articulá-lo com a questão agrária brasileira e com o contexto de desmonte das políticas públicas, análise fundamentada na teoria policy dismantling.

Palavras-chave: reforma agrária; participação política; política pública; policy dismantling.

Abstract

The transformation of the land into merchandise and its acquisition by a small portion of the population has long been an evidence of the lack of priority given to the agrarian issue by the Brazilian State, as well as the fact that a large part of public resources are destined to the technological modernization of large properties. the allocation of a large part of public resources to the technological modernization of large properties. On the other hand, collective experiences persist, generally resisting long processes of struggle. This article aims, therefore, to build a reflection about public policies in Brazil articulated with the actions of land regularization developed in Mutirão Campo Alegre, a process that has been dragging on for 39 years. The main effort of this article is to analyze the slowness of the regularization process seeking to articulate it with the Brasiliano agrarian issue and with the context of dismantling public policies, an analysis based on the policy dismantling theory.

Keywords: political participation; land regularization; public policy; policy dismantling.


Submissão:
07 dez. 2022

Aceite:
11 mar. 2023

Publicação:
18 mai. 2023

Citação sugerida

MENDONÇA DELGADO, Mônica. Terra, mercadoria ou espaço de vida: reflexões sobre políticas públicas e a questão fundiária a partir do ‘Mutirão Campo Alegre’. Revista IDeAS, Rio de Janeiro, v. 17, p. 1-21, e023006, jan./dez. 2023.

Licença: Creative Commons - Atribuição/Attribution 4.0 International (CC BY 4.0).


Introdução

A estrutura fundiária brasileira apresenta acentuada concentração da propriedade e as políticas direcionadas ao setor agrícola, de modo geral, desassociam as dimensões econômicas das sociais. Há muito tempo, a terra, transformada em mercadoria, tem sido adquirida por uma pequena parcela da população, geralmente com o apoio do poder público, para fins de desenvolvimento econômico, realidade que relega a um lugar secundário, a sua função social. Nesta direção, é possível afirmar que a reforma agrária nunca foi uma prioridade para o Estado brasileiro, e grande parte dos investimentos públicos voltados para o setor agrícola era, e ainda é, direcionada à modernização tecnológica das grandes propriedades. Na contramão dessa realidade, experiências coletivas persistem buscando a reforma agrária, resistindo, em geral, a longos processos de luta, ora envolvendo conflitos mais violentos, ora negociações com o Estado. Este artigo objetivou, portanto, construir uma reflexão sobre as políticas públicas no Brasil articulada à regularização fundiária da área denominada Mutirão Campo Alegre[1], processo que se arrasta há 39 anos. A ocupação se estabeleceu numa área de 2059 hectares na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, entre os municípios de Nova Iguaçu e Queimados, dividida em sete Regionais[2], onde vivem aproximadamente 400 famílias que lutam pelo acesso definitivo à terra.

Mapa  1 – Localização do Mutirão Campo Alegre

A política de terras no Brasil revela, de modo geral, sucessivas escolhas do Estado em promover o desenvolvimento econômico apoiando políticas que estimulam a agricultura agroexportadora. Diante dessa constatação, o esforço principal deste artigo foi buscar aproximar a morosidade do processo de regularização fundiária com a realidade histórica de concentração da propriedade da terra, bem como com o contexto de desmonte das políticas públicas, análise fundamentada a partir das estratégias pautadas pela teoria policy dismantling[3].

Considerando que a análise da política pública envolve não só a compreensão do Estado em ação, mas um conjunto de elementos articulados, particularmente, a relação estabelecida entre o Estado e a sociedade, este artigo pretendeu também resgatar o debate sobre a própria definição de política pública, além de buscar entender a conjunção Estado, Sociedade e Decisão Política.

Ainda entre os desafios, o artigo procurou compreender as razões latentes envolvidas na decisão do Governo do Estado do Rio de Janeiro, através do Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (Iterj), em insistir com o processo de regularização fundiária por meio de usucapião individual, recusando a opção de desapropriação para fins de reforma agrária. Para além da razão relativa à dimensão econômica fundamentada na escolha racional custo-benefício, quais outras poderiam motivar tal escolha dos produtores/executores de políticas públicas? É possível capturar outros elementos essenciais, não claramente revelados, mas contidos no processo de decisão e implementação da política pública?

Partindo desse conjunto de reflexões e da compreensão de que a realidade social resulta das relações e condições estabelecidas entre as pessoas e que a linguagem é um mecanismo que assegura a vida social, deliberadamente utilizei a Assembleia Comunitária de maio de 2021, realizada pela Associação Geral Agrícola de Campo Alegre, como matéria-prima para analisar as interrelações construídas entre a comunidade rural e as três esferas de governo, estadual (Iterj), federal (Incra[4]) e municipal (Semam/NI[5]). Este exercício permitiu observar o posicionamento de cada instituição em relação ao processo de regularização fundiária no território Mutirão Campo Alegre e, ao mesmo tempo, tentar estabelecer uma conexão entre as construções teóricas sobre políticas públicas, o contexto de redução da atuação do Estado e a luta pela garantia de direitos.

1. Política pública, seu caráter contraditório, os sentidos implícitos e as incoerências constitutivas do processo de implementação: o caso do Mutirão Campo Alegre

Iniciando as reflexões que este artigo pretende provocar, destacamos a retomada de algumas questões que são intrínsecas ao debate proposto: em que consiste a ação pública? Para que existem políticas públicas? Elas existem para resolver um problema real? E os atores envolvidos, particularmente a sociedade civil, podem interagir com o Estado e influenciar sua decisão?

Buscando problematizar, gradativamente, tais questões, é importante destacar que a partir da década de 1980, período de redemocratização e de elaboração da nova Constituição Federal, ocorreram mudanças importantes no âmbito das políticas públicas, particularmente, a criação de mecanismos de participação da sociedade civil na formulação, implementação e controle das políticas públicas. Segundo Farah (2016), novos canais de participação, como os conselhos, conferências, orçamentos participativos, audiências públicas, contribuíram para a diversificação do lócus da análise das políticas. Para a autora, a análise das políticas públicas, em todo o seu percurso (desde a década de 1930 até o presente), não se restringe ao tomador de decisão, mas inclui uma multiplicidade de atores que procuram influenciar a formulação e/ou participar do processo de implementação e avaliação. Com um outro olhar sobre o tema, Muller e Surel (2004) sugerem que as decisões políticas e a alocação de recursos possuem uma natureza mais ou menos autoritária e coercitiva e, mesmo em casos em que o uso da coerção não está previsto, como nas políticas redistributivas, a ação governamental constrói detentores de direitos.

Embora tais indagações iniciais sobre a relativa autonomia do Estado e/ou a sua interação com a sociedade civil no processo de produção das políticas públicas sejam importantes para este artigo, é mister recuperarmos, antes, um pouco do debate sobre a própria definição de política pública. Muller e Surel (2004) introduziram esta discussão, restabelecendo a definição “tudo que o governo decide fazer ou não fazer”, afirmação que aborda qualificações mínimas, bem como apresentando outras mais completas, tais como: quando a política pública se refere a um programa de ação governamental num determinado setor da sociedade, por exemplo na saúde ou num espaço geográfico, numa determinada cidade. Há ainda muitas outras construções que podem contribuir com esta reflexão que são menos ou mais elaboradas, como medidas tomadas pelos governos para colocar em prática direitos que são garantidos aos cidadãos por leis, ou simplesmente, são formas de fazer política na prática.

Como é possível verificar, a definição de políticas públicas não é algo simples, como também é complexa a discussão sobre política de terras no Brasil ou a regularização fundiária das terras não produtivas, as quais poderiam responder ao interesse público e ao bem-estar coletivo, entre outras questões. Mas, mesmo com a tentativa de construir uma abordagem mais ampla para políticas públicas, como definindo-as como ações governamentais, produzidas a partir da interação entre Estado e sociedade e voltadas ao desenvolvimento socioeconômico da população num contexto de democracia, tal acepção, pura e simples, desatrelada da realidade, do compromisso e da vontade política não se traduz em respostas aos anseios daqueles que persistem na luta pela posse definitiva da terra ou que vivenciam uma determinada situação desfavorável.

Essas reflexões iniciais podem incidir como uma luz sobre o tema, mas são insuficientes para responder a uma das questões importantes propostas neste artigo: como a ação pública é decidida e implementada? Tal indagação revela a complexidade contida no processo de construção da política pública e, de modo particular, daquelas voltadas para o setor agrícola, principalmente se considerarmos a história de distribuição de terras no Brasil.

Em face desta realidade, vale resgatar, brevemente, alguns elementos históricos que revelam a profunda desigualdade contida na distribuição da propriedade da terra no país, situação que, de certa forma, ressoa na atualidade. Estudiosos da questão agrária, de modo geral, consideram que acontecimentos ocorridos no passado podem ser traduzidos como raízes da desigualdade no acesso à terra, o que significa que a concentração fundiária e o uso da monocultura, características que marcaram a ocupação portuguesa no Brasil, podem ser vistas como espólios da realidade desigual que configura, atualmente, tanto o campo quanto a área urbana do país.

Partindo, então, da primícia que a conjuntura vivida por parcela significativa da sociedade brasileira tem suas raízes inscritas em processos contínuos de abandono e ausência da esfera pública, destacamos alguns fatos e decisões que marcaram a política de terras no Brasil e contribuíram para a sua distribuição não igualitária. O sistema sesmarial, por exemplo, que foi utilizado entre o período da colonização até a ocasião da Independência do Brasil, garantia a um único sesmeiro grandes extensões de terra. Tal forma de distribuição pode ter se configurado como uma das origens do latifúndio no Brasil. Após a Independência, não se tem informação sobre a elaboração de leis específicas que tenham regulado a distribuição e o uso da terra. Assim, a organização fundiária nesse período é conhecida como lei do mais forte e descrita na literatura com acontecimentos de violência no campo e mortes. Apenas em 1850 se instituiu no Brasil, ainda no período imperial (Segundo Reinado), a primeira lei que abordou a questão fundiária, lei de terras que regulamentou, segundo Medeiros (2003), a situação de posse da terra, após a extinção das sesmarias, assim como a sua manutenção, uso e comercialização, e estabeleceu a compra como a única forma de obtenção de terras. Assim, a terra, transformada em mercadoria, constituiu-se em propriedades ainda maiores, obtidas por antigos proprietários que dispunham de recursos. Tais medidas impediram que ex-escravos e estrangeiros tivessem acesso à propriedade da terra.

Outros elementos históricos que contribuíram com a reflexão proposta neste texto, vale destacar que a questão fundiária no século XX ganhou relevo nos anos 1940 com a atuação das ligas camponesas, movimentos importantes na defesa da reforma agrária e da melhoria da qualidade de vida no campo. Nos anos 1960, as mobilizações dos trabalhadores do campo permitiram algumas conquistas significativas como a regulamentação do direito à organização sindical dos trabalhadores rurais (1962); a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural (1963), que ampliou os direitos trabalhistas, antes concedidos somente ao trabalhador urbano, tais como férias, décimo terceiro, entre outros benefícios; e a aprovação do Estatuto da Terra (1964), elaborado pelos militares como uma tentativa de reduzir as pressões que emergiram com os movimentos campesinos. É importante ressaltar que, embora o Estatuto da Terra apresentasse no art. 16 que a reforma agrária visava estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, o que certamente teria sido um instrumento para a redução dos conflitos no campo, foi um documento, conforme sinaliza Medeiros (2003), esquecido pelo Poder Público que optou por apoiar a modernização tecnológica das grandes propriedades por meio de incentivos fiscais. A reforma agrária, portanto, não se constituiu uma prioridade do Estado e os investimentos públicos foram direcionados para as propriedades com grandes extensões de terra.

Os fatos mencionados, síntese histórica que revela a realidade de desigualdade relativa à distribuição da terra no Brasil, fazem parte do pano de fundo da tela que retrata um processo contínuo de discriminação e marginalização do setor camponês. Na esteira desses acontecimentos, este artigo segue com o desafio de articular as dificuldades contidas no processo de regularização fundiária, num determinado território brasileiro, com a longa história de concentração da propriedade da terra e a posição assumida pelo Poder Público no tocante à produção de políticas públicas.

Para tanto, cumpre enfatizar que analisar a ação do Estado é mais relevante do que estudá-lo somente como aparelho político administrativo. Neste sentido, Muller e Surel (2004) observam algumas dificuldades relativas à existência da política pública. Entre elas o seu caráter intrinsecamente contraditório, ou seja, as políticas públicas não são reunidas num quadro normativo e cognitivo totalmente coerente, as contradições e incoerências fazem parte das políticas públicas e devem ser levadas em conta. Eles enfatizam que os tomadores de decisão buscam alcançar objetivos, muitas vezes, em si mesmos contraditórios, como implementar ações que reduzam determinados indicadores de mortalidade, ao mesmo tempo que limitam as despesas médicas.

Esse caráter contraditório contido nas políticas públicas pode ser uma chave importante à compreensão da insatisfação dos mais vulneráveis com a ausência de efetividade e rapidez nas ações do Estado. Tais contradições podem se complexificar um pouco mais, quando profissionais que respondem por determinada instituição pública, embora demonstrem entender as razões econômicas que orientam certo governo em exercício, são capazes de reconhecer que a política escolhida não é uma alternativa admissível do ponto de vista do usuário da política. Diante disso, é possível afirmar que além das contradições que já constituem, normalmente, o desenvolvimento da política pública, podemos observar outros impasses, relativos às diferenças de visão de mundo e à formação acadêmica existentes entre técnicos concursados que gerenciam instituições públicas e eleitos para mandatos estabelecidos do Poder Executivo. Tal realidade, torna a decisão política um pouco mais complexa, como pode ser observado no caso do Mutirão Campo Alegre durante a assembleia comunitária realizada em maio/2021, quando trabalhadores e trabalhadoras rurais discutiram com representantes das esferas estadual (Iterj), federal (Incra) e municipal (Semam/NI) o processo de regularização fundiária:

Eu estou aqui tranquilo porque… eu sou bastante transparente, quem me conhece sabe que as vezes eu não tenho papas na língua, as vezes cometo um pouco de sincericídio, e eu sou servidor do Estado e a minha missão é servir ao público. A gestão do Iterj está ali para fazer a política do governo, normalmente a gestão segue a política do governo, mas os servidores públicos são aqueles que permanecem mesmo com a mudança de gestão. Então na maioria das vezes a culpa é da gestão que segue a política do governo do estado, mas também não é esse vilão todo... mas para sermos honestos, sinceros e corretos na avaliação das coisas… não ficou só no papel, conforme a nossa colega falou sobre a questão da regularização fundiária aqui de Campo Alegre, o Iterj começou o processo de cadastro socioeconômico dos agricultores familiares porque aqui o Iterj só pode auxiliar na regularização de quem é baixa renda agricultor familiar. E iniciar o processo de levantamento topográfico aqui, que chamamos de cadastro físico (...) Então, o caminho estava sendo esse de levar a regularização fundiária aqui de Campo Alegre pelo processo de usucapião, agora tem essa outra manifestação para que isso aqui vire um assentamento rural reconhecido pelo Incra. Sendo transparente, tudo tem seus pós e seus contra, virando um assentamento vocês tem acesso a políticas públicas e vocês tem uma segurança de isso aqui se manter como área rural, por outro lado num processo de usucapião cada um tem mais liberdade do que fazer com a sua terra, então há um risco da área virar um loteamento urbano, há risco da especulação imobiliária, de assédio de grandes empreendedores, então há todo esse risco que descaracterizaria aqui a área…agora é simples transformar isso em assentamento rural? Não é? Campo Alegre é uma colcha de retalhos, tem vários proprietários aqui no papel… são donos da terra que perderiam seus direitos por conta do tempo que vocês estão ocupando aqui, mas tornaria o processo um pouco mais complexo e talvez mais demorado e processo de usucapião talvez fosse um pouco mais rápido (...) Então, eu não vim aqui dizer o que vocês tem que fazer, eu vim auxiliar com algumas informações, do que está ao meu alcance… eu sou engenheiro agrônomo de formação e eu sempre digo que a minha recompensa e o meu interesse pessoal é o desenvolvimento da agricultura no estado do Rio. … eu sempre falo que o assentamento rural , ele não tem só uma função de produção , não tem só uma função econômica, tem a função social, que tira a pessoa dos grandes conglomerados urbanos e isso aí elimina um monte problemas que a grande concentração de pessoas gera e também tem a questão da manutenção do meio ambiente, pois manter uma área verde aqui dentro dessa selva de pedra, e ter uma ilha verde aqui dentro que funciona com diversas propriedades ambientais que as pessoas as vezes não tem noção do isso representa… se isso aqui virar um aglomerado urbano, a qualidade de vida de todo mundo no seu entorno, vai reduzir bastante… então, a manutenção disso aqui realmente como uma área rural de produção de agricultura familiar eu acho importantíssimo, agora qual caminho que vai seguir depende de vocês...é para cobrar do Estado… e eu falo eu sou concursado, mas quem acaba definindo as política é a gestão que chega com cada governo e todos tem seus interesses políticos. (GERENTE DE ASSENTAMENTOS/ ITERJ MAIO-2021/ASSEMBLEIA COMUNITÁRIA QUE DISCUTIU O PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM MUTIRÃO CAMPO ALEGRE/NOVA IGUAÇU-RJ).

Além das questões tratadas anteriormente, vale destacar o trabalho de Muller e Surel (2004) que, ao se apoiarem em Cobb e Elder (1983), discutiram o conceito de “público” da política, ou seja, que é preciso observar o conjunto de indivíduos, grupos ou organizações afetadas pela ação do Estado. O grau de participação do público beneficiário, o modo e a intensidade podem influir no conteúdo e/ou na implementação da uma política pública:

Então, como é que a coisa funciona? É na pressão, é quem grita mais alto… é conforme aquele velho ditado “quem não chora, não mama”, então isso aqui é uma oportunidade de vocês estarem dizendo o que vocês querem para o Estado, se não houver isso aqui, se ninguém reclamar, o barco vai seguindo como está… (GERENTE DE ASSENTAMENTOS/ITERJ/MAIO-2021/ASSEMBLEIA COMUNITÁRIA QUE DISCUTIU O PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM MUTIRÃO CAMPO ALEGRE/NOVA IGUAÇU-RJ).

Tentar compreender a ação pública pode constituir um impasse teórico e metodológico. Assim, os autores supramencionados sugerem que a saída poderia ser considerar que as ações e as decisões no âmbito de uma política pública dificilmente terão um todo coerente, e que é preciso, portanto, que quem a analisa procure entender as lógicas de sentido no processo de elaboração e de implementação da política, ou seja, compreender os sentidos da ação ou da não ação do Estado.

Em vista de tais argumentos, é possível questionar qual seria o sentido em arrastar por 39 anos a finalização do processo de regularização fundiária de uma determinada área ocupada por trabalhadores rurais? Seria pela característica de incoerência e contradição constitutiva da ação pública mencionada por Muller e Surel (2004) ou a decisão de não fazer nada pode também ser um aspecto importante da política pública? A ausência de uma ação efetiva que poderia resolver um problema real pode ser considerada uma ação política?

Como não é simples responder imediatamente a tais indagações, vale acrescentar às reflexões já propostas, outro aspecto apresentado pelos autores (2004) relativo ao debate sobre o sentido de uma política pública. Eles destacam que tal sentido pode ser explícito ou implícito, e que, de modo geral, objetivos não declarados são próprios a toda política e que os sentidos da ação pública e seus fins podem ser modificados à medida da sua implantação.

Eis uma questão central que pode nos levar a buscar algumas pistas importantes para a compreensão dos sentidos latentes, presentes no longo e moroso processo de regularização fundiária do território Mutirão Campo Alegre. Realidade que desafia a comunidade organizada de trabalhadores e trabalhadoras que habita essa área, diante de uma posição aparentemente de descaso do estado do Rio de Janeiro, cuja instituição responsável, o Iterj, só manifestou publicamente interesse em dialogar quando foi acionada pelo Ministério Público.

Considerando que a área ocupada se encontra numa região da Baixada Fluminense cujo distrito industrial está em expansão, não é difícil observar a pressão exercida pelas empresas em descaracterizar a área que luta para permanecer como comunidade rural. Essa particularidade do projeto de assentamento, localizado entre os municípios Queimados e Nova Iguaçu, tradicionalmente considerados cidades-dormitórios de trabalhadores urbanos pobres, local também visto como franja rural-urbano em função do uso rural e urbano da terra, de certa forma pode nos oferecer uma pista importante para entender a complexidade e a morosidade do processo de regularização fundiária.

À vista dos argumentos apresentados, é possível indagar alguns prováveis sentidos implícitos que estão presentes em tal ação pública. Desse modo, vale então distingui-los dos objetivos apresentados pelos tomadores de decisão, sentidos que podem apresentar contornos mais claros ao longo da implementação.

        Aprofundando um pouco mais o debate que relaciona o processo de regularização fundiária aos possíveis sentidos implícitos da política pública, é possível verificar que o dilema presente na escolha do instrumento jurídico que definirá a posse da terra dos ocupantes da área de Campo Alegre é alimentado pelo desacordo existente entre a decisão política do Iterj e a opinião dos integrantes da comunidade rural.

Há uma clara polarização de opiniões entre os atores envolvidos no processo de regularização fundiária, cujos argumentos foram confrontados na assembleia comunitária realizada em 21 de maio de 2021, organizada pela Associação Geral Agrícola de Campo Alegre. De um lado, o governo do estado do Rio de Janeiro, por intermédio do Iterj, defende o acesso ao título da terra mediante o instrumento jurídico usucapião, forma aquisitiva do direito individual à propriedade protegida legalmente e, do outro, os trabalhadores rurais, apoiados pelas instituições parceiras, universidades públicas, Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre outros movimentos sociais, defendem a desapropriação para fins de reforma agrária, opção política em que o Estado intervém no direito de propriedade, priorizando o interesse público, se valendo do princípio da supremacia deste sobre o particular. Estes atores buscam influenciar a decisão do governo e alterar o processo de regularização fundiária que está em curso. É possível observar que em Mutirão Campo Alegre algumas ideias, tais como o individualismo, a liberdade de acesso à propriedade, a valorização da história de luta pela reforma agrária, a manutenção da tradição rural do território, a preservação do meio ambiente e das nascentes d’água, a solidariedade, os direitos individuais e/ou coletivos, entre outros valores, contribuem para a conformação de grupos distintos que polarizam percepções de mundo e opiniões a respeito do melhor termo jurídico que garantirá a política de regularização fundiária rural para o território.

        É importante mencionar que a morosidade observada no processo de regularização, somada ao contexto de desmonte das políticas públicas, na época, e ao crescimento do setor industrial no local, provocou alguns questionamentos, na comunidade e nas instituições envolvidas (sociedade civil organizada e universidades), sobre as razões que obstaculizavam o andamento da posse definitiva da terra: por que não atender a demandas da maioria dos trabalhadores rurais? A razão seria somente econômica, racional, ligada à crise financeira do Estado, por ser mais caro, complexo ou há outros sentidos, não imediatamente discutidos que levam o Estado a priorizar o usucapião individual em detrimento do processo de desapropriação da terra para fins de reforma agrária? A fala a seguir reflete essa discussão.

Bom pessoal, vou tentar ser breve, né? Eu acho que muito do que eu gostaria de falar, já foi falado aqui, não é? É essa área de Campo Alegre, ela tem uma importância não só para as famílias de agricultores e agricultores sitiantes que estão aqui, mas para toda a região metropolitana do Rio de Janeiro, não é? A gente sabe que o processo de urbanização descontrolada de toda a Baixada Fluminense, da região metropolitana do Rio de Janeiro acaba gerando uma série de problemas que todos nós pagamos por isso, não é? Então, quem se beneficia desse processo de loteamento, especulação imobiliária são poucos, não é? quem acaba ganhando dinheiro com isso, e os prejuízos desse processo acabam sendo socializados para toda a sociedade, especialmente os mais pobres, não é gente?

Existem duas formas, basicamente, de você enxergar um pedaço de terra, uma delas é a forma que está colocada aí no sistema capitalista, que é a terra como mercadoria, ou seja, se enxerga o pedaço de terra apenas como dinheiro. Como que eu vou fazer para tirar dinheiro dessa terra o mais rápido possível? E aí esse sistema de enxergar a terra, que que acontece, por exemplo, acontece esses areais que a gente vê aqui não é? Aí vamos extrair areia… ou então esses loteamentos, esses é essa especulação imobiliária… vamos transformar isso aqui, vender rápido, ganhar o máximo de dinheiro, ou também se transforma no que em muitos outras regiões do Brasil faz, o que o agronegócio faz, não é? Vamos plantar aqui uma monocultura, meter umas máquinas que meter um monte de veneno e depois se a terra tiver esgotada aqui, a gente larga para lá e compra outra. Então, essa é uma forma de enxergar a terra. E a outra forma de enxergar a terra, que a terra como espaço de vida, porque sem a terra, não há vida… a terra é um lugar que a gente pode plantar o alimento, pode cuidar da água… quando a gente fala de terra, gente tá falando de água também… água doce que a gente depende para sobreviver… ela está armazenada dentro da terra, ela sai da terra através das nascentes dos rios, não é? E é na terra que a humanidade, ao longo de toda a sua história, mais de mil anos… que as pessoas podem viver, podem criar seus filhos, criar suas famílias, se reproduzir, criar sua cultura, o que gente chama de reprodução social. (IGOR CARVALHO, PROFESSOR DA LEC/UFRRJ – MAIO/2021 – ASSEMBLEIA COMUNITÁRIA REALIZADA PARA DISCUTIR A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM MUTIRÃO CAMPO ALEGRE).

Diante das opções apresentadas: terra como mercadoria ou como espaço de vida, bem como os possíveis desdobramentos em termos de benefícios e prejuízos que tais escolhas podem gerar à comunidade em questão, vale acrescentar ao debate algumas observações sobre a noção de Estado para buscar encontrar os possíveis nexos presentes na ação do Estado no caso do processo de regularização fundiária em curso em Mutirão Campo Alegre.

        Trata-se, por ora, de indicar que a concepção de Estado, a partir da teoria marxista, permite compreender melhor a lógica da mercadoria que estrutura a sociedade capitalista:

O enfoque metodológico geralmente seguido nestes processos é “genético” e “funcional”, genético quando se indaga as origens históricas da função do Estado que está nos conflitos entre as classes sociais (...), funcional quando se verifica que se as tarefas historicamente criadas, a que o Estado deve presidir, resolvem-se ou não numa relação de funcionalidade com os processos de valorização da estrutura capitalista. (NOBBIO et. al., 1983, p. 804)

É bem verdade que o debate em torno do conceito de Estado é muito mais amplo e complexo, contudo, cabe sinalizar que, no caso aqui analisado, a ação política proposta pelo governo do estado do Rio de Janeiro parece conter um sentido implícito, não imediatamente reconhecido, mas que, ao observarmos um pouco mais, é possível reconhecer a defesa de interesses outros, diferentes dos claramente apresentados pelos trabalhadores e trabalhadoras da comunidade rural, ou seja, o usucapião individual pode devolver esse território para o mercado de terras:

E eu fico muito feliz de estar aqui e olhar esses rostos marcados de histórias, de memória e que está se propondo a querer esse caminho, não é? Que é o caminho de ter um assentamento que produz a vida. Um assentamento que produza... e esse território produz a vida e aí eu quero entrar em algumas questões, uma é que esse território é um território de história, de memória e de muita luta, e aí a gente precisa ser reconhecido documentalmente como agricultor, a gente precisa existir para incidir sobre política públicas, em todas as esferas, municipal estadual e federal para gente acessar. Então, a gente precisa ser reconhecido como agricultor, se a gente não tiver esse reconhecimento, todo o trabalho, pode ser em vão, não queremos que isso seja em vão. Então, a gente precisa avançar na questão da documentação e da regularização do território e dos agricultores que estão neste território para a gente pensar a política pública. É preciso estar nos planos diretores dos municípios, os planos diretores dos dois municípios precisam dizer quais os territórios são rurais, porque muda a política, muda os interesses... a especulação imobiliária sobre o território e quem está gerindo esses municípios. Então, a gente precisa de ter uma segurança, a gente precisa delimitar nos planos diretores municipais, esses territórios, esses territórios são territórios agrícolas, possíveis de alcançar essas políticas públicas. (BIA CARVALHO, LÍDER COMUNITÁRIA – MAIO/21 – ASSEMBLEIA COMUNITÁRIA PARA DISCUTIR A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM MUITRÃO CAMPO ALEGRE).

Abordar essa discussão sobre os sentidos de determinada ação política, não prontamente reconhecidos, revela a complexidade contida na relação entre o Estado, a sociedade e a decisão política. Em síntese, há de se considerar na análise de determinada política pública, aspectos importantes sugeridos por Muller e Surel (2004) presentes na própria definição de política pública, ou seja, suas contradições e incoerências, bem como seus sentidos explícitos e implícitos, revelados ao longo do processo de implementação da política pública, que no caso de Campo Alegre nos suscita o questionamento: se as demandas dos ocupantes da área rural não são atendidas, que segmentos outros seriam beneficiados com a implementação do usucapião individual? O Estado atuaria nesse caso como um “comitê para gerir os negócios da burguesia” (MARX; ENGELS, 2004, p. 7) local?

        Para finalizar essa parte da reflexão proposta sobre a complexa relação entre Estado e sociedade na produção e implementação de uma política pública, vale destacar uma última reflexão, igualmente relevante, também sugerida por Muller e Surel (2004): a noção de não decisão é útil para a compreensão da ação política? É possível uma política consistir em não fazer nada?

        Uma não decisão intencional, isto é, não fazer nada por longos anos, deixando determinado grupo social numa espera contínua, pode ser considerada uma ação política, com consequências tanto políticas quanto econômicas. Muitas famílias que participaram do processo de ocupação desistiram de seus lotes diante das dificuldades de cultivar a terra sem o auxílio de políticas de incentivo agrícola, e muitos desses lotes foram repassados para outros donos, sob acordos sem respaldo legal, o que reduziu sensivelmente o valor obtido por aqueles que se sentiram forçados a vender. Contudo, tal realidade não desestimulou parte significativa das famílias[6] que ocupam terra em Campo Alegre:

Então, Bráulio, Laerte e muitos outros atores se reúnem e começam a discussão sobre o processo de retomada da luta pela terra, de um projeto e de retomar na pauta do cotidiano que tinha sido esquecido que é a pauta da reforma agrária. E aí eles se organizam e vem ocupar esse território. Eles ocupam no dia 9/1/1984. É muita gente, é muita gente que está reunida neste lugar. E esse processo, o pessoal começa a discutir, tem enfrentamentos graves, sério com os grileiros… Nós temos assassinato em Campo Alegre, nós temos sumiço de pessoas, famílias inteiras sumiram e até hoje a gente não sabe por onde anda e o que aconteceu com essas pessoas. Tivemos a morte, não podemos deixar de lembrar o que foi o assassinato extremo e violento de alguém aqui do passado, que foi o líber Lindberg que saiu daqui espancado e acabaram de matar Lindberg, lá na altura da do Capoeirão, próximo da casa da dona Maria José. Lá eles terminaram de matar o Lindberg, isso são memória que não podem ser esquecidas. São memórias que a gente não pode deixar que o poder público chegue aqui e diga para a gente que simplesmente não dá para fazer nada. É jogar fora, é jogar no lixo, na vala, experiências de homens e mulheres que enfrentaram grileiros, enfrentaram chuva, que enfrentaram o sol para conquistar esse pedaço de chão.

Tivemos em 2006 uma grande reunião como essa aqui com a presença do ITERJ, quando eles disseram naquele dia, para aquelas pessoas que iam dar início no processo de regularização fundiária…ficou no papel e até hoje nós não conseguimos dar conta… de ter um laudo, ou seja, um diagnóstico, uma fala desse órgão sobre essa realidade. Então só para finalizar, dizer que é um prazer poder estar aqui. (SÔNIA MARTINS, LIDERANÇA DA COMISSÃO PASTORAL DA TERRA – MAIO/2021 – ASSEMBLEIA COMUNITÁRIA REALIZADA PARA DISCUTIR A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM MUITRÃO CAMPO ALEGRE).

A não decisão que, em última análise, pode levar o gestor à decisão de não fazer nada perante a um problema real de determinado grupo social, pode ser compreendida como parte das estratégias de desmantelamento das políticas públicas, em curso no país já a alguns anos.

2. Regularização fundiária do Mutirão Campo Alegre: reflexo da histórica política de terras do Brasil somado ao processo de desmantelamento e desconstrução do Estado de direito

A última parte deste artigo procurou abordar alguns argumentos, bem como apresentar dados dos últimos anos, buscando articular uma realidade local com o movimento denominado policy desmantling, as medidas de austeridade do Estado e a inexistência de políticas de terras relativas à regularização fundiária no Brasil.

        Nesta direção, vale destacar que a partir de 2016, segundo Rossi et al. (2018), os princípios de austeridade passaram a nortear o setor público brasileiro, particularmente a EC no 95[7], que reduziu o tamanho do Estado pelos próximos 20 anos. Embora pareça claro para alguns, uma parte da população não associa que este tipo de gestão fiscal pode gerar impactos sociais e consequências distributivas ainda mais desfavoráveis para os segmentos sociais mais vulneráveis, incluindo a população que depende da terra para a manutenção de sua sobrevivência material.

        Muito se tem discutido acerca deste tema, pois esse tipo de gestão orçamentária incidirá, evidentemente, sobre a garantia de direitos sociais, entre eles o direito à terra. Se o Poder Público no Brasil, ao longo de sua história, não conseguiu produzir políticas públicas que reduzissem, significativamente, a desigualdade de distribuição da terra, com a opção deliberada pela austeridade, a questão social e a questão agrária tendem a ser agravadas. Vale ainda destacar que, segundo Rossi et al. (2018), numa economia em crise, ao contrário dos argumentos, comumente utilizados, que associam o corte de gastos ao equilíbrio das contas públicas, é possível observar que a redução de investimentos públicos pode mergulhar num círculo vicioso, em que o corte de gastos reduz o crescimento, piora a arrecadação e o regime fiscal, levando a novos cortes de gastos. Quem então se beneficiaria com tais políticas que, de certa forma, configuram a contração do Estado ou a sua retirada de cena?

É importante articular essa questão com a reflexão sobre o conceito de Estado apresentado no início deste artigo, ou seja, é preciso considerar que a ação do Estado pode estar associada a processos de valorização da estrutura capitalista, que as políticas públicas possuem um caráter contraditório e um sentido implícito, não reconhecido de imediato, observado a partir do processo de implementação, o que pode modificar os fins da política em função dos resultados da própria ação. Nesta direção, é possível afirmar que o que se desenha com esse tipo de Estado e suas políticas pode ser a defesa de interesses de determinados segmentos da sociedade contrários à manutenção e à ampliação dos direitos sociais, entre os quais o direito à terra, cujas políticas para fins de reforma agrária asseguraria a permanência no campo e o fortalecimento da identidade de trabalhador rural.

Depois das considerações tratadas até aqui, as próximas linhas serão dedicadas às reflexões finais que articulam o contexto de desmonte de políticas pública no Brasil com a longa espera pela titulação da terra, situação vivida pela comunidade Mutirão Campo Alegre e por tantas outras no país.

        O desmantelamento das políticas voltadas para o fortalecimento da agricultura familiar no Brasil, por exemplo, tem se intensificado nos últimos anos. Não é difícil constatar que formou-se uma onda conservadora, sustentada pelo discurso da ineficiência do Estado e do combate à corrupção, que influenciou o processo de desmonte das políticas públicas no país. Nesta perspectiva, não é possível desassociar a noção de austeridade, contração do Estado, medidas características da visão de mundo neoliberal, com o processo de desmantelamento das políticas públicas, entre elas a política de terras.

        Dessa forma, vale destacar que o incremento do desmantelamento das políticas públicas no Brasil fez parte de um movimento complexo de processos decisórios tomados por formuladores de políticas, o que pôde ser observado na fala da principal autoridade administrativa do país: “O que nós procuramos fazer desde o início do governo é facilitar a vida de vocês. Vocês não devem nenhum favor para nós. Nós é que somos devedores de favores a vocês. Quem emprega são vocês” (Folha de São Paulo, 2021)[8].

        O processo de desmonte pode se transformar em estratégias de organização de política, como destaca Mello (2022), e não deve ser entendido como um fenômeno único, mas como um procedimento que pode variar, considerando a área e o contexto institucional. Neste sentido, ele pode se dar com mais facilidade ou não, dependendo de alguns aspectos: o baixo envolvimento de atores como a sociedade civil, o baixo grau de institucionalização de determinados temas, entre outros. O fato importante é que o desmonte em curso traduz-se como a ordem do dia e está presente em toda a agenda dos direitos sociais, mesmo que em níveis mais ou menos acelerados.

        Em virtude do contexto desenhado, não é difícil intuir as razões pelas quais as políticas de reestruturação e regularização fundiária não avançam. O processo de desmantelamento das políticas locais parece sistêmico, isso significa que não há possibilidade de olhar cada área isoladamente. Nesta perspectiva, as dificuldades relativas às demandas dos agricultores familiares, atualmente, precisam ser analisadas em conjunto com a desregulamentação dos territórios, por exemplo, pois, como sinalizou Claudia Schimitt[9], a desregulamentação de territórios da população indígenas e das políticas ambientais afetam a vida dos agricultores familiares. Realidade observada nas decisões do Executivo: “Não demarcarei um centímetro de terra indígena e ponto final”[10].

        Ao final, declarações feitas em período de campanha eleitoral tornaram-se realidade, assim como o processo de desmonte acompanhado da ausência de ações políticas que atendam, de modo geral, as demandas das populações que estão em condição de vulnerabilidade social.

        É preciso destacar, ainda, que o desmonte das políticas públicas no Brasil é caracterizado pelo uso de estratégias diversificadas, assim como pelo grau de densidade e intensidade. Procedimentos que, segundo Mello (2022), diferem entre si: “enquanto a densidade poderia ser medida pela quantidade de políticas e instrumentos abolidos (...), a intensidade diz respeito a capacidade administrativa e procedimentos de operacionalização, como restrições de equipes e recursos” (p. 8-9).

Quanto às estratégias, o processo de desmantelamento das políticas, hoje, revela em cada novo capítulo um conjunto de práticas que podem ser explicadas a partir das características proposta por Michael Bauer et al. (2012), por: 1) default: marcada pela inação, redução de recursos orçamentários, desmobilização das instâncias de participação social, não cumprimento de etapas previstas, entre outras situações; 2) mudança de arena: transferência da coordenação de uma política para outra instância governamental ou setor, reduzindo a prioridade da política; 3) ações simbólicas: revela clara intenção de desmontar políticas existentes para obter ganhos políticos com o discurso, sem que isso implique efetivamente a redução ou extinção de determinada política; e 4) desmonte ativo: ação deliberada de reduzir, suspender ou extinguir uma política, apoiada em medidas de “desfinanciamento”, desestruturação de equipes, entre outras.

Com efeito, o processo de desmantelamento tem repercussões sobre as políticas rurais e ambientais, assim como em diversas outras áreas. Para exemplificar como tal processo tem ocorrido, vale destacar, conforme analisa Sabourin et al. (2020), que os recursos alocados no conselho agrícola sofreram uma redução de 92% entre os anos 2015-2010, percentual relativo à queda significativa nas cifras, de R$ 735 milhões para R$ 63 milhões. Outro dado importante examinado por Sabourin et al. (2020) refere-se aos recursos alocados para os beneficiários da reforma agrária que passaram de R$ 355 milhões em 2015 para R$ 7,3 milhões em 2020, ou seja, 5,5% do total de 2015. Quanto às políticas fundiárias, os mesmos autores verificaram que no governo Lula (2003-2010), segundo dados oficiais, foram instaladas aproximadamente 615.000 famílias e, no primeiro governo Dilma, 108.000 famílias. Contudo, o segundo governo Dilma (2014-2016) apresentou dificuldades e iniciou o desmantelamento por default, que se manifestou com a redução de recursos alocados para a obtenção de terras e instalação de famílias. Processo que se intensificou nos anos seguintes entre os governos Temer e Bolsonaro, com uma gestão de políticas fundiárias que se configurou mais claramente neoliberal. Os autores destacam também que a publicação de novas regras, incluindo a Lei no 13.465/2017, marcou a paralisia das políticas de reforma agrária, bem como a permissão de venda de terras de reforma agrária e a privatização de terras públicas. Tais medidas acabam invertendo os objetivos da política de reforma agrária, na medida em que oferece mais terras para o mercado fundiário.

Na esteira desse debate, vale ainda acrescentar que o dossiê[11] produzido pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc, em 2022, sobre a atuação do governo Bolsonaro revelou que este apoderou-se das estruturas do Estado para destruir os direitos sociais conquistados ao longo de anos, utilizando práticas de assédio institucional, militarização dos órgãos públicos e, sobretudo, o desmantelamento das políticas públicas. O documento destaca ainda que o governo Bolsonaro buscou emplacar uma agenda ruralista, inclusive no que se refere aos assuntos ligados ao licenciamento ambiental em terras indígenas.

Considerações finais

Finalizando, e com o desafio de desenvolver algumas sínteses, este artigo buscou mostrar que a realidade vivida por trabalhadoras e trabalhadores rurais possuem suas raízes inscritas em processos dinâmicos e complexos da história que produziram, e ainda produzem, condições e leis com a intenção de manter privilégios de alguns em detrimento de uma grande parcela da sociedade brasileira.

As reflexões construídas tiveram como objetivo apresentar uma aproximação entre a situação local vivida num território da Baixada Fluminense, Mutirão Campo Alegre, ocupado por 400 famílias que aguardam o título da terra há 39 anos, com a conjuntura política nacional marcada pelo abandono das questões sociais, incluindo a pauta referente à distribuição e à permanência na terra. Situação que exemplifica o desmonte da política pública, processo que torna a realidade daqueles que se encontram em posições desfavoráveis na estrutura socioeconômica ainda mais sombria e incerta.

Este texto, portanto, procurou refletir sobre a estrutura de poder político do Estado que mantém e amplia a desigualdade na medida em que o processo de decisão no âmbito das políticas públicas desconsidera as demandas do público, prática que tem se mostrado comum numa sociedade tradicionalmente hierarquizada, segregada de múltiplas formas e marcada pelo patrimonialismo. Além disso, o artigo ponderou que os dilemas e desacordos existentes entre os atores sociais envolvidos no processo de produção e implementação de políticas públicas são produzidos em razão  das contradições, incoerências, ou ainda, inflexões presentes no âmbito da política pública, bem como da inversão dos objetivos fundantes de órgãos públicos, criados para a defesa do bem público, mas que nos últimos anos converteu-se, mais claramente que em outras épocas, em benefícios privados.

Contudo, uma parte da população segue resistindo, confrontando práticas de apagamento, invisibilização e abandono. Persistem superando a violência, a pressão e o assédio do mercado local, constroem laços de vizinhança e parceiras com a intenção de fortalecer a identidade de agricultor(a) rural, organizam associações e coletivos para manter viva a memória e a solidariedade, produzem alimentos saudáveis e saberes que são potencialmente transformadores.

O artigo, portanto, procurou compartilhar algumas reflexões sobre o processo de regularização fundiária, desenvolvidas a partir do trabalho de campo realizado ao longo dos últimos cinco anos num território que, embora seja uma das maiores áreas rurais ocupadas do estado do Rio de Janeiro, é invisibilizado como espaço de produção rural. Entre idas e vindas de governantes, desde o período de Leonel Brizola, trabalhadores e trabalhadoras permanecem na luta buscando o reconhecimento da posse da terra e a manutenção da identidade rural das famílias. Entrementes, as segundas e terceiras gerações recusaram a proposta do usucapião individual, o que descaracterizaria definitivamente a área como rural, e persistem exigindo do Estado uma alternativa política que contemple os anseios das famílias que construíram suas memórias e histórias de luta nesse pedaço de chão chamado Mutirão Campo Alegre.

Por último, é fundamental mencionar que, após anos de resistência da comunidade rural e de diálogo com o Iterj – Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro, as universidades, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Agricultura de Nova Iguaçu, entre outras instituições, o impasse gerado pela escolha do termo de posse (usucapião individual ou desapropriação para fins de reforma agrária) começou a ser resolvido. A certeza dos trabalhadores e trabalhadoras em manter o território como área rural, em razão da história construída pelas gerações anteriores e da expectativa de um futuro melhor, possível com as políticas agrícolas, levou-os a conquistar a possibilidade de escolher outro caminho que pudesse atender melhor as principais demandas da comunidade. Trata-se do documento sugerido pelo Iterj denominado Termo Administrativo de Reconhecimento de Posse – Tarp, amparado pela Lei no 13.465, de 11 julho de 2017, que dispõe sobre a regularização fundiária urbana e rural no estado do Rio de Janeiro. O Tarp rural é o primeiro passo para a regularização do território, pois se constitui um título provisório de posse, válido por cinco anos, que mantém o perfil rural da área e cumpre a função social da terra. Contudo, necessita de aprovação de Lei Federal específica para a consolidação do assentamento e concessão do título definitivo de posse. Essa alternativa, portanto, embora responda melhor as demandas da comunidade rural, particularmente, a continuidade da identidade rural do território, ela exige que trabalhadores e trabalhadoras rurais permaneçam na luta política, pois outras etapas ainda precisam ser vencidas. Apesar da luta pela reforma agrária, travada há quase 40 anos neste território da Baixada Fluminense, ainda não ter finalizado, o processo de regularização fundiária, ao longo dos últimos anos, confirma algumas ponderações teóricas construídas no campo das políticas públicas, particularmente aquela que afirma que o grau de participação do público beneficiário, o modo e a intensidade podem implicar, influir no conteúdo e/ou na implementação de uma política pública.

“Então assim, esse é um encontro histórico, nesse sentido, nesta parceria de ampliar esse horizonte, a gente precisa sair com um plano de ação concreta, para a gente avançar é… na busca desse sonho, não é? Do sonho dos nossos pais, dos sonhos dos nossos avós, dos sonhos de tanta gente que já passou e de tanta gente que está firme aqui na luta para que saia esse processo, que seja regularizado e reconhecido para que a gente possa avançar. Vamos seguir na luta, eu acho que esse encontro aqui é um encontro de resistência, de mobilização, e de organização, agora é preciso pensar os próximos passos para frente”. (BIA CARVALHO, LÍDER COMUNITÁRIA – MAIO/2021 – ASSEMBLEIA COMUNITÁRIA REALIZADA PARA DISCUTIR A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM MUTIRÃO CAMPO ALEGRE).

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Mônica Mendonça Delgado

Possui graduação e mestrado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente é doutoranda no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Socióloga da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS/UFRJ) e professora de sociologia na Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC).

E-mail: monicam.delgado@yahoo.com.br

ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/4540903923095973

ORCID: https://orcid.org/0009-0005-1323-2702

Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 17, 1-21, e023006, jan./dez. 2023 • ISSN 1984-9834


[1] “Projeto de Assentamento” – Definição atribuída pelo Iterj – Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro às áreas que estão em processo de regularização.

[2]  Marapicú, Chapadão, Mato Grosso, Fazendinha, Acampamento, Capoerão e Terra Nova.

[3] Policy dismantling é um tipo de mudança política constituída por cortes, diminuição ou remoção completa de políticas existentes. São estratégias pensadas, principalmente, durante períodos de austeridade econômica. É uma marca registrada da política dos ‘tempos difíceis’, quando políticos são pressionados a gerar recursos. Estas mudanças políticas foram responsáveis por redução de direitos e benefícios sociais (BAUER et al. 2012).

[4]  Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

[5]  Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Agricultura-Nova Iguaçu

[6] Segundo o relatório do Iterj/dezembro de 2018, o projeto de assentamento Mutirão Campo Alegre possuía 400 famílias, um dos maiores do estado do Rio de Janeiro.

[7] A Emenda Constitucional no 95 (EC no 95), de 15 de dezembro de 2016, estabeleceu o Novo Regime Fiscal – NRF no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, que vigorará por vinte exercícios financeiros.

[8] Folha de São Paulo. Mariana Holanda: ‘Bolsonaro é aplaudido por empresários ao dizer que deve favores a eles e que põe juízes neutros no TST’, Folhapress, publicado em 7 de dezembro de 2021. Disponível em:

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/12/bolsonaro-e-aplaudido-por-empresarios-ao-dizer-que-deve-favores-a-eles-e-que-poe-juizes-neutros-no-tst.shtml

[9] Nos baseamos aqui na exposição da professora Cláudia Schimitt na mesa 2: Desmonte de Políticas Públicas no Mercosul: Políticas Agrárias, de Segurança Alimentar e Nutricional e para Agricultura Familiar/Seminário Internacional Estados, Políticas Públicas Mundos Rurais e Perspectivas e Desafios / OPPA.

[10] HIRABAHASI, Gabriel ‘Não demarcarei um centímetro quadrado a mais de terra indígena – diz Bolsonaro’, O Globo, Época Coluna Expresso, publicado em 12 dez. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/epoca/expresso/nao-demarcarei-um-centimetro-quadrado-mais-de-terra-indigena-diz-bolsonaro-23300890

[11] Documento produzido pelo Inesc e pela associação que representa servidores e indigenistas da Funai (INA) lista ilegalidades na política de (não) demarcação de territórios indígenas, redução de recursos, militarização e opressão dentro do órgão. Título: ‘Funai se transformou em Fundação Anti-indígena’, alerta dossiê sobre a atuação do órgão no governo Bolsonaro. Publicado em 16/6/2022.