Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 19, 1-23, e025014, jan./dez. 2025 • ISSN 1984-9834
Artigo original • Revisão por pares • Acesso aberto
As relações de cooperação com a China e a mecanização da agricultura familiar brasileira: o caso do MST
Cooperative relations with China and the mechanization of Brazilian family farming: the case of the MST
Janailson Santos de Almeida
Resumo Diante de um cenário desfavorável para o campesinato brasileiro, dado o seu atraso em relação ao desenvolvimento da indústria de máquinas agrícolas adaptadas à agricultura familiar, se torna pertinente a estratégia do MST de cooperação com a Universidade Agrícola da China (CAU, China Agricultural University) para intercâmbio tecnológico e aquisição de máquinas agrícolas para a agricultura familiar camponesa agroecológica do Brasil. Enquanto o Brasil desenvolveu um agronegócio estruturado na grande produção de commodities para exportação, com especialização regressiva da indústria agrícola, a República Popular da China (RPC) calcou seu desenvolvimento na modernização da agricultura camponesa, com vigorosa indústria de fabricação de pequenas e médias máquinas agrícolas. Segundo Ramos (2023), 73% da agricultura chinesa é mecanizada. No Brasil, dos 77% dos estabelecimentos agrícolas que correspondem à agricultura familiar, apenas 12% possui maquinário agrícola (IBGE, 2017). A desigualdade no uso, posse e propriedade da terra é gritante. A estratégia do MST de mecanização da agricultura familiar brasileira por meio da cooperação com a China, representa um passo importante para o desenvolvimento da agricultura familiar, em especial na região Nordeste do país e principalmente para a estruturação do projeto de Reforma Agrária Popular e do campesinato Sem Terra, no sentido de construir alternativas ao modelo primário-exportador do agronegócio. Palavras-chave: MST. China. Mecanização. Cooperação popular. Agricultura familiar camponesa. Abstract Keywords: MST. China. Mechanization. Popular cooperation. Peasant family farming. | Submissão: Aceite: Publicação: |
Citação sugerida ALMEIDA, Janailson Santos de. As relações de cooperação com a China e a mecanização da agricultura familiar brasileira: o caso do MSTl. Revista IDeAS, Rio de Janeiro, v. 19, p. 1-2/, e025014, jan./dez. 2025. Licença: Creative Commons - Atribuição/Attribution 4.0 International (CC BY 4.0). |
Introdução
“Essa enxada já me deu muito o que comer”, disse meu pai quando abandonou o velho instrumento de xaxar[1] feijão, deixou de “trabalhar para os outros” e passou a trabalhar no sítio[2] que adquirira, utilizando uma capinadeira – cultivador e arado puxado por boi ou mula. Ele mantinha enxadas para que os filhos o acompanhassem no roçado e, além da capinadeira, obteve também uma ou duas matracas[3]. Foi assim que eu passei minha infância, adolescência e boa parte da juventude. Primeiro no sítio e depois no lote de reforma agrária com a minha família, trabalhando na terra, plantando milho, feijão, macaxeira, batata, amendoim, no Nordeste brasileiro, interior do estado da Paraíba, cidade de Remígio – localizada na mesorregião Curimataú, de clima semiárido, marcado principalmente pela seca. Na região do semiárido, as características e as condições da agricultura são, em geral, precárias. Me refiro, claro, à agricultura familiar, que é predominante nesse território.
Muitos seguiram “trabalhando para os outros” ou “no cabo da enxada”. Tantos outros seguiram outro caminho, migrando para as grandes cidades do sul, sudeste e centroeste do país, como alguns dos meus irmãos. Mas, também há muitos outros que, assim como o meu pai com sua família, tiveram acesso à terra, deixaram de “trabalhar para os outros” e foram cuidar das suas famílias e lotes.
Além da capinadeira, da matraca e de carro de boi, as famílias que mais evoluíram possuem forrageira para triturar ração[4] e fazem silagens para armazenar alimento para os animais durante a seca. Para os “cortes de terra” ou as colheitas de grãos[5], aluga-se trator[6] em troca da “conga”[7] ou pagamento em dinheiro. Obviamente que, mais recentemente, muitas famílias possuem moto, carro e, algumas, pequenas caminhonetes. Esses automóveis frequentemente são utilizados para transportar a produção ou alimento para os animais, para uso em geral e, costumeiramente, para “ir à feira”[8].
Eu nasci em 1990, ou seja, estamos falando de um período relativamente recente. Apesar de as palavras acima soarem estranhas, o que relato é ainda a realidade de centenas de milhares de famílias de agricultores camponeses no Nordeste. Há importantes transformações ocorridas principalmente nas últimas duas décadas, fruto de políticas públicas e programas sociais que trouxeram significativo desenvolvimento econômico e progresso técnico para a região. Entre quais estão o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), Seguro Safra da Agricultura Familiar, Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), entre vários outros projetos de desenvolvimento e fortalecimento da agricultura familiar no Semiárido, por meio de organizações não governamentais (ONGs), como a Articulação do Semiárido (ASA) e organizações e movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e projetos de entidades ou instituições públicas como o Instituto Nacional do Semiárido (INSA) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA).
Entretanto, ainda estão lá o boi de carro, a mula de capinadeira, a saudosa enxada, os que “trabalham para os outros”, a ração de mandacaru, os animais “criados na corda”, o “homem do trator”, o balde de água – agora não mais para carregar na cabeça, mas para tirar água da cisterna –, a foice, o facão, o fogão à lenha etc.
Fazendo um paralelo, com a chegada de Deng Xiaoping ao poder a partir de 1978, o campo na China se desenvolveu vertiginosamente, especialmente nos primeiros 15 anos das reformas, elevando-se o seu índice de crescimento econômico, industrial e tecnológico. A terra foi des-coletivizada sob a implementação do Sistema de Responsabilidade Familiar (SRF), que garantiu às famílias camponesas a comercialização dos seus produtos e foram estabelecidas as Empresas de Vilas e Aldeias (EVAs), impulsionando o desenvolvimento de forças produtivas no campo. Na década de 1990 o país já estava bastante industrializado e havia passado por mudanças importantes na estrutura social, com alto índice migratório e alta taxa de urbanização. Apesar da baixa na população rural, de quase 90% em 1950 para cerca de 70% em 1990 (NBS, 2020) e a crise na produção agrícola que levou a amplo processo de privatização das EVAs e levantes massivos de camponeses nos anos 1990, contra a tesoura de preços praticada pelo estado (extração de excedentes da agricultura via altos impostos para financiar a indústria urbana e elevação dos preços dos produtos industriais para a agricultura), a agricultura camponesa chinesa seguiu constante evolução técnica e tecnológica.
A modernização agrícola, que vinha desde a era Mao Zedong (tratores, irrigação, arroz híbrido, indústria de ferro), foi elevada a uma etapa superior na era Deng Xiaoping (grande indústria nacional de produção agrícola), sacrificando em grande medida o campesinato e chega à era Xi Jinping com alto nível de tecnificação (máquinas agrícolas inteligentes, energias renováveis, e-commerce etc.), com alto grau de modernização tecnológica para a agricultura camponesa. Durante as três grandes eras da modernização rural, e principalmente após Deng Xiaoping, as famílias de camponeses em todo o país “aposentaram suas enxadas”. Na era Xi, a partir da transição ocorrida na virada do século – continuação da era anterior com Jiang Zemin e início da era atual com Hu Jintao –, a China está se tornando uma potência industrial e tecnológica sem precedentes. No entanto, ainda se fala pouco sobre a modernização chinesa na agricultura camponesa e sua importância para o país.
Neste artigo, trato da discussão sobre a estratégia de mecanização da agricultura familiar alavancada pelo MST a partir da construção de uma plataforma de cooperação com a China. Ocorreu-me iniciar de forma um tanto literária para fazer um link com questões que trago nas considerações finais, a respeito da necessidade e da importância da mecanização da agricultura familiar como forma de proporcionar desenvolvimento rural, com uma estratégia real de modernização do campo através do fortalecimento da agricultura familiar camponesa, agroecológica e comunitária.
Este texto é fruto de reflexões coletivas que participei enquanto militante do MST e sobretudo da minha experiência na tarefa de articulação política na China entre os anos de 2020 e 2021. Essa articulação se deu para construção da plataforma que deu vida ao projeto que resultou no convênio para experimentação de máquinas agrícolas em territórios da agricultura familiar e da reforma agrária no Nordeste do Brasil, concretizada via relação institucional com o Consórcio Nordeste e outros projetos com a Universidade de Brasília (UnB) até então. Além desta introdução e das considerações finais, o texto é dividido em três partes: uma revisão de literatura, que trata da economia política do agronegócio, como modelo primário-exportador de commodities e sua especialização regressiva; a experiência do MST na cooperação com a China propriamente dita, pensada em uma perspectiva de cooperação popular; e o debate da mecanização da agricultura familiar camponesa no âmbito da construção do programa de Reforma Agrária Popular.
O objetivo é contrapor ideias dominantes do modelo do agronegócio, expressando os limites da especialização primário-exportadora da agricultura brasileira e discutir alternativas vinculadas à cooperação com a China, relatando a experiência de articulação alavancada pelo MST em parceria com instituições públicas.
A Economia Política do Agronegócio e o “Consenso das Commodities”: da pauta primário-exportadora brasileira à dependência chinesa
A sensação, para nós dos movimentos camponeses, com o efeito contagiante da última propaganda “agro – a indústria-riqueza do Brasil” que se popularizou através principalmente da Rede Globo de televisão, é a de que fomos trucados. A capacidade de manifestação dessa propaganda e a sua ingerência no interior da sociedade se hegemonizaram de forma a custar-nos fazer um contraponto. Como afirmam Delgado e Leite (2022, p. 1), “esse processo é vendido como uma espécie de sucesso incontroverso de uma entidade mágica – o ‘agronegócio’”. Sobre o poder ideológico do agronegócio, Pompéia (2020) analisa o sentido hegemônico dado no slogan “agro é tudo”, inclusive a intencionalidade de cooptação da agricultura familiar por trás dessa estratégia[9].
O contraponto, entretanto, é bastante explícito, sobretudo pelas próprias contradições do modelo de desenvolvimento do agro. As organizações e movimentos camponeses têm denunciado os efeitos nocivos do modelo do agronegócio para com a natureza, os conflitos socioambientais e a violência no campo, a contaminação por agrotóxicos e a ameaça da “comoditização” da alimentação para a soberania alimentar, etc. No entanto, os esforços de quem reivindica a agricultura familiar em defender o modelo agrícola camponês e expor os males do modelo do agronegócio não têm o mesmo efeito.
Delgado e Leite (2022) chamam atenção para o que conceituam como especialização primário-exportadora da agricultura brasileira em meio à expansão econômica, fronteiriça e ideológica do agronegócio, principalmente a partir dos anos 2000, quando começa a ocorrer o que Escher; Schneider e Ye (2018) chamaram de “efeito china” no desenvolvimento do agronegócio brasileiro. A ascensão da China nos últimos 45 anos, especialmente com sua entrada na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001 e sua agenda de importações, combinou sincronicamente com o boom das commodities, que impulsionou e elevou exponencialmente o crescimento econômico do agro brasileiro. As relações de exportação com a China levaram o país a tornar-se o principal parceiro comercial em 2009, superando os Estados Unidos. Atualmente a China é destino de cerca 75% da soja produzida no Brasil (Konchinski, 2022). O “efeito china” teve impacto significativo no desenvolvimento do agronegócio brasileiro, não só fortalecendo a sua hegemonia, mas reforçando a chamada “especialização regressiva” da agricultura brasileira.
Segundo Delgado e Leite (2022, p. 2), o modelo de desenvolvimento orientado ao agronegócio, que está na pauta central dos governos, “acentua a dependência do conjunto do sistema econômico relativamente ao setor especializado em exportações [...] [e] combina mecanismos de dilapidação ambiental com outros de concentração fundiária de renda e riqueza”. Além disso, o Brasil sofre um processo brutal de financeirização da terra e da agricultura, gerando especulação e ameaçando sua segurança alimentar. Os autores explicam como esse processo de reprimarização da pauta de exportações representa uma “desindustrialização da economia brasileira” e reforçam que:
Esse processo de especialização primário-exportadora afeta negativamente as estratégias alternativas de desenvolvimento rural baseadas na sustentabilidade agroecológica e no combate às desigualdades socioeconômicas (Delgado; Leite, 2022, p. 2).
E afirmam ainda que:
Essa valorização do chamado ‘agronegócio’ brasileiro abre uma nova frente de conflitos sociais e ambientais no meio rural, tensionando as concepções de ruralidade que se apoiavam no fortalecimento da agricultura familiar ou na dimensão territorial (Delgado; Leite, 2022, p. 13).
Esse tema foi aprofundado antes por Delgado (2012) ao atualizar o debate sobre o capital financeiro na agricultura e a economia do agronegócio. O autor, que analisou a “modernização conservadora” na agricultura brasileira, é referência para entender a estrutura econômica do agronegócio e a questão agrária brasileira. Em seu livro, na seção que trata da economia do agronegócio, do subdesenvolvimento e da reconfiguração da questão agrária, Delgado (2012, p. 127) considera que os recursos naturais (tanto a terra como os minerais) “submetidos à exploração intensiva ou extensiva, derivada da demanda por commodities, produzem rendas fundiárias, que são objeto de ávida disputa no processo de apropriação da renda e da riqueza social”. O autor critica o “pacto do agronegócio” na configuração da política agrária brasileira.
Os ganhos de produtividade na fase expansiva das commodities viram renda da terra e do capital, capturadas privadamente pelos proprietários das terras, das jazidas e do capital; mas os custos sociais e ambientais da superexploração desses recursos e do trabalho precarizado aí envolvido são da sociedade como um todo. [...] as condições da expansão agrícola vinculadas a 1) uma inserção externa dependente; 2) ao perfil da dupla superexploração dos recursos naturais e do trabalho humano; e 3) a uma forma de extração do excedente econômico, fortemente vinculada à renda fundiária; configuram novos ingredientes de uma questão agrária muito além dos limites setoriais da agricultura (Delgado, 2012, p. 128).
Escher (2020) também chama atenção para os riscos da especialização na agricultura brasileira ao falar da “especialização regressiva”, referindo-se à “estrutura produtiva e a pauta exportadora da economia brasileira”. O autor faz uma crítica à inserção internacional da macroeconomia do agronegócio em sua relação de dependência, apontando os “impactos contraditórios associados ao chamado ‘efeito China’”. Escher (2020) concorda com Delgado (2012) e Delgado e Leite (2022) ao compreender que esse modelo de desenvolvimento causa um efeito de reprimarização constante da economia brasileira em torno da produção cada vez mais acentuada de commodities.
Ademais, para Escher (2020), a relação de exportação primária e dependente com a China é negativa não só para a industrialização brasileira, mas também para a posição do país de liderança regional na América Latina. Essa crítica é aprofundada por Svampa e Slipak (2015) ao tratarem da participação econômica da China na América Latina, em especial nas relações comerciais do agronegócio, a partir do que se convencionou como “Consenso das Commodities” (Svampa, 2013; Svampa e Slipak, 2015; Bringel e Svampa, 2023). Segundo Svampa (2013), há um novo consenso, baseado em vantagens comparativas, que leva tanto os governos conservadores quanto os progressistas na América Latina a compactuar com os interesses das grandes potências em explorar os recursos naturais do continente. Nesse sentido, a autora corrobora as visões de Delgado (2012), Escher (2020) e Delgado e Leite (2022) em relação ao processo de reprimarização das economias latino-americanas e no que diz respeito à espoliação dos territórios e comunidades camponesas, indígenas, quilombolas e outros, gerando contradições e conflitos que violam os direitos desses povos[10].
De acordo com Svampa e Slipak (2015), a forma como tem se demonstrado a cooperação chinesa para a América Latina não se diferencia de outras experiências. Embora possamos considerar a importância da política chinesa de não intervenção, seu poderio econômico é utilizado no âmbito do consenso das commodities, reproduzindo a mesma lógica de exploração estabelecida pelas relações de poder dentro dos países[11]. Os autores questionam se a mudança do hegemon na geopolítica mundial, com a “desocidentalização” do controle econômico, vai levar a um multilateralismo benéfico aos países do Sul Global ou conduzir a uma concertação entre as potências econômicas, levando à reestruturação de um modelo de exploração capitalista predatório.
Ante o fortalecimento recente dos países BRICS, nos perguntamos como se dará uma retomada da articulação dos países latino-americanos e caribenhos para fortalecimento da integração regional. Há expectativas de que o Brasil jogue um papel de liderança na coordenação das alianças sul-americanas e latino-americanas no sentido de buscar a soberania dos países da região e a constituição de relações de cooperação mais autônomas e menos dependentes com os países centrais, os EUA e a China. O Brasil se projeta como ator central na geopolítica internacional, nos BRICS e na América Latina, mas resta pensar como se dará a sua participação na Belt and Road Initiative (BRI) – Nova Rota da Seda –, na transição energética e frente à nova onda progressista na América Latina em um cenário de emergência de movimentos e governos neofascistas.
Além das discussões macroeconômicas e de cooperação para estratégias de desenvolvimento macroestruturantes, é importante compreender qual o papel da China nas relações bilaterais que envolvem articulações para projetos de “cooperação de baixo perfil”, para desenvolvimento de projetos de economia solidária, cooperativismo, projetos ambientais, desenvolvimento técnico e tecnológico da pequena e média agricultura etc. A China tem desenvolvido parcerias desse tipo através do Forum on China-Africa Cooperation (FOCAC)[12], que envolve os 54 países do continente africano, e constrói processo similar com a criação do Fórum China-Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). É nesse sentido que surge a cooperação chinesa com o MST[13] a ser abordada a seguir.
A Cooperação Camponesa Popular e a estratégia do MST para mecanização da Agricultura Familiar no Brasil
Quando começou-se a pensar sobre cooperação internacional para desenvolvimento tecnológico da agricultura camponesa a partir do MST, a primeira questão levantada foi: por que a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO)[14] não tem um programa internacional que promova a cooperação tecnológica para o desenvolvimento da agricultura familiar? Esse foi o pontapé para várias discussões sobre como propor um intercâmbio tecnológico entre as nações que leve a trocas progressistas, com foco em resolver problemas estruturais em benefício de um desenvolvimento que de fato melhore a qualidade de vida das populações. Para isso seria necessário uma “FAO Popular”, que fosse capaz de estabelecer uma rede de articulações com organizações e movimentos sociais, comunidades e territórios de agricultura de base familiar.
Outra questão que fez avançar as discussões foi: quais países possuem desenvolvimento tecnológico voltado para o campesinato ou para a produção familiar (pequena e média escala)? Entre os quais foram identificados Itália, Alemanha, Japão, República da Coreia, Vietnã e China. Não é fácil obter dados sobre maquinaria agrícola por país, principalmente os referentes a pequenos e médios tratores. Os dados do Banco Mundial (BM) para maquinaria agrícola/tratores só existem até o ano 2000 para a maioria dos países e não existe divisão entre grandes e médios vs. pequenos tratores. De qualquer forma, é possível identificar na tabela abaixo uma tendência. Entre 1965 e 2000 houve, em geral, aumento da quantidade de tratores. Além disso, pode-se observar os dados sobre população rural e terra arável nos respectivos países para a seguinte análise.
Tabela 1 - Potenciais países provedores de pequena e média tecnologia agrícola
População rural (2023) (%) | Tratores (Unid.) | Terra arável (2021) | ||||
1965 | 2000 | % | milhões (ha) | % | ||
Itália | 28% | 419.943 | 1.643.613 | 291% | 7,19 mi | 24,3% |
Alemanha | 22% | 1.027.884 | 989.488 | -3% | 11,65 mi | 33,3% |
Japão | 8% | 60.000 | 2.027.674 | 3.279% | 4,08 mi | 11,2% |
Coreia | 19% | 35 | 191.631 | 547.417% | 1,34 mi | 13,7% |
Vietnã | 61% | 13.600 | 162.746 | 1.096% | 6,78 mi | 21,6% |
China | 35% | 73.021 | 989.139 | 1.254% | 108,86 mi | 11,5% |
Brasil | 12% | 114.000 | 797.466 | 599% | 58,25 mi | 6,9% |
Fonte: elaboração própria a partir de BM (2024).
Como os dados da tabela acima refletem apenas tratores em geral, não demonstram o nível de tecnologia agrícola familiar do país. Mas, se relacionados aos dados de população rural e terra arável, pode-se dizer que os países mencionados são considerados potenciais provedores de tecnologia agrícola familiar, com máquinas agrícolas para a pequena e média produção. Certamente, é preciso olhar caso a caso para entender as características de cada país de acordo com sua realidade. E, obviamente, para se ter uma análise real, seria preciso investigar também aspectos como concentração de terras, controle econômico de setores estratégicos e monopólio tecnológico da fabricação de máquinas.
As características do modelo do agronegócio brasileiro, por exemplo, com grande concentração de terras, monopólio tecnológico e poder econômico sob controle de poucas grandes empresas, difere do Japão, que tem alta taxa de urbanização e pequenas propriedades com grande quantidade de máquinas agrícolas de pequeno e médio porte; da China, que tem alto grau de industrialização e desenvolvimento tecnológico para a agricultura, alta população rural e pequenas propriedades; e do Vietnã, onde mais da metade da população vive no meio rural com significativo grau de desenvolvimento tecnológico e sem concentração da propriedade da terra, o que leva a crer que haja maior fabricação de máquinas pequenas e médias nesses países, se colocado em comparação.
Ao pensar uma aproximação com os outros países, o MST buscou se articular a partir da Via Campesina Internacional (LVC, La Via Campesina), para angariar parcerias com as organizações do campo, com interesse em diferentes tipos de tecnologias que pudessem servir para o fortalecimento e desenvolvimento das principais cadeias produtivas da agricultura familiar camponesa, partindo do diagnóstico da própria experiência das cooperativas e agroindústrias do MST no Brasil. No entanto, entre os países identificados, a maioria não possui movimentos ou organizações camponesas vinculadas à LVC, ao menos formalmente (e.g. Japão, Vietnã e China). Alemanha e Itália possuem organizações que dialogam com a LVC e, mais recentemente, foi incorporado à Via um movimento de mulheres camponesas da Coreia. O MST também mantém relação com o Movimento da Nova Reconstrução Rural (NRRM, New Rural Reconstruction Movement) da China, através da qual me desloquei para o país em intercâmbio no início de 2020.
Com o NRRM, visitei experiências de agroecologia e soberania alimentar, como a do sítio Wenxing em Shanghai e da fazenda Little Donkey em Beijing – a primeira Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) da China, coordenada pelo NRRM. Por meio das relações construídas visitei experiências de agricultura ecológica em Tongren, província de Guizhou e a ideia era visitar também cooperativas e outras experiências técnicas e tecnológicas do campesinato na China, como a experiência de cooperativismo em Shanxi, mas em função da pandemia de Covid-19 e outras dificuldades não foi possível avançar[15]. Assim, foi se definindo a atual “brigada”[16] de militantes internacionalistas responsáveis pela articulação para as relações de cooperação com a China. Inicialmente baseada em Shanghai, a brigada fica agora em Beijing e leva o nome de Liang Jun[17].
A partir das relações com o NRRM, outras relações foram se estabelecendo até se constituir a proposta de cooperação China-América Latina, impulsionada pelo MST em parceria com a Universidade Agrícola da China (CAU, China Agricultural University), especialmente através da relação com uma professora do Colégio de Engenharia (College of Engineering) da CAU, diretora do Centro de Pesquisa para Desenvolvimento da Mecanização Agrícola (China Research Center for Agricultural Mechanization Development)[18], que vem acompanhando todo processo.
No contexto da articulação com a China, foi consolidada a criação de uma plataforma de cooperação internacional, envolvendo países do Sul Global que, por meio de organizações camponesas, se somaram ao MST na estratégia de aproximação para cooperação tecnológica com a China, no intuito de fortalecer seus projetos de agricultura. Assim foi criada a International Association for Popular Cooperation (IAPC)[19] ou Associação Internacional para Cooperação Popular (AICP), depois batizada de Baobá[20] ou Baobab.
Por meio da Baobá, sob orientação da direção do MST e outras organizações da LVC e da coordenação da Brigada Liang Jun na China, foram se construindo as relações com a CAU e discutindo-se a proposta de cooperação recentemente publicizada em virtude do lançamento, em 2 de fevereiro de 2024, do convênio para cooperação com o Nordeste através de memorando de entendimento[21] entre o Consórcio Nordeste, o Instituto Internacional de Inovação de Equipamentos Agrícolas e Agricultura Inteligente da CAU e a Associação de Fabricantes de Máquinas Agrícolas da China (CAAMM, China Association of Agricultural Machinery Manufacturers), intermediado pela Baobá/IAPC. A publicidade se deu pela chegada de máquinas agrícolas da China na cidade do Apodi, no estado do Rio Grande do Norte, para implementação de um programa experimental em áreas da agricultura familiar e reforma agrária do Nordeste.
A proposta da cooperação é fazer a testagem das máquinas por dois anos sob monitoramento de pesquisadores de institutos e universidades parceiras[22] junto com cooperativas e organizações do campo para avaliação e adaptabilidade[23]. Durante o período de testagem, deve-se avançar para uma etapa de construção de política pública em discussão com os diversos atores e para um outro estágio da cooperação, com articulação para instalação no Nordeste e em outras regiões do país de fábricas de máquinas agrícolas para a agricultura familiar[24]. Após a vinda da comitiva chinesa ao Nordeste, houveram vários movimentos de articulação para diversos projetos, entre eles a construção de um Centro de Inovação e Tecnologia para Mecanização Agrícola[25] em parceria com a UERN e outras instituições.
Chamo aqui atenção para um novo tipo de cooperação representado nessa parceria, completamente diferente do padrão das relações comerciais com o agronegócio. O papel da Baobá é promover a cooperação popular para o desenvolvimento de projetos de agricultura camponesa (entre outros projetos) no Sul Global, especialmente entre organizações que se preocupam com o cooperativismo, a agricultura familiar e a agroecologia. Essa cooperação popular deve ser entendida como um tipo de cooperação de baixo perfil ou de base, fruto de uma “diplomacia de base”, fundamentada no princípio da solidariedade como guia do internacionalismo de classe, onde o povo mesmo constrói as relações de cooperação de acordo com seus interesses, por meio de suas organizações. Ainda não há produção científica em torno desse conceito, ele surge de elaborações políticas a partir de discussões levantadas pelos próprios movimentos e organizações sociais em suas diversas instâncias.
Assim como o MST construiu o seu conceito de Reforma Agrária Popular (RAP)[26], se desenvolve a ideia de cooperação popular. É popular porque é feita pelo povo, com o povo e para servir ao povo, fruto do interesse popular. Pensada no âmbito da RAP, a cooperação popular CAU-MST deve atender à necessidade de desenvolver um modelo de agricultura e de produção de alimentos com o objetivo de suprir as necessidades e os interesses da população. Assim, pode ser chamada de cooperação camponesa popular.
Sendo articulada em nível internacional, esse tipo de cooperação é caracterizada como internacionalismo de classe, historicamente praticado pelos países e processos socialistas, fruto da solidariedade entre os povos. Dessa forma a Baobá busca aproximar instituições que estão dispostas a contribuir com as organizações de base ou populares para fomento à industrialização, apoio à organização coletiva e desenvolvimento de projetos com propostas que possam ser materializadas, principalmente contemplando aquisição de tecnologia, intercâmbio tecnológico e/ou transferência de tecnologia de forma contextualizada e planejada, com foco na industrialização.
Com essas articulações, logrou-se não só o projeto de experimentação de máquinas agrícolas chinesas em áreas da agricultura familiar do Nordeste, mas outros projetos, como um convênio com a Universidade de Brasília (UNB) para desenvolvimento de pesquisa conjunta em bioinsumos, em parceria com o Instituto de Pesquisa em Reciclagem Orgânica (Organic Recycling Research Institute) da CAU em Suzhou e uma parceria com uma universidade na Argentina para projeto de agroindustrialização de tomate junto à Rama Rural do Movimiento de Trabajadores Excluidos (MTE), entre outros. Além desses, a Baobá vem promovendo cooperação para intercâmbios e projetos de desenvolvimento tecnológico para a agricultura familiar em países do Sul Global, como é o caso de Gana (África), com projeto de cooperação para o desenvolvimento da cadeia produtiva do cacau[27] e experiências de produção agroecológica e reflorestamento em outros países[28].
É importante analisar a China para entender as determinações da realidade chinesa que levaram ao seu processo de modernização, como para refletir sobre porque seguimos, em comparação, extremamente atrasados no Brasil. No alto da revolução chinesa, com a fundação da República Popular da China (RPC) em 1949, o país era, quase em sua totalidade, agrícola. A revolução chinesa foi fundamentalmente uma revolução agrária, feita pelo campesinato. A reforma agrária foi fundamental no processo de desenvolvimento tecnológico do período maoista e seguiu depois na era Deng e agora com Xi Jinping, com mudanças e adaptações. Esse processo pode ser mais bem conhecido em Escher (2020), que em sua tese de doutorado estudou a fundo agricultura e alimentação na China[29].
Nos anos das reformas coordenadas por Deng Xiaoping, a China ainda possuía mais de 80% da sua população no campo. De acordo com dados oficiais do National Bureau of Statistics of China (NBS), a população rural do país era de 58,24% em 2004 e chegou a 33,84% em 2023. O país possui uma taxa de urbanização de mais de 65%, mas ainda conta com quase meio bilhão de pessoas vivendo no meio rural, o que corresponde a cerca de duas vezes e meia o tamanho da população total do Brasil.
Para Escher; Schneider; Ye (2018, p. 7), “o paradoxo que países em desenvolvimento como o Brasil e a China estão enfrentando é que o antigo e declinante problema da fome coexiste com novos e crescentes problemas de desnutrição e obesidade”. No caso da China, segundo dados do NBS, a Campanha de Alívio da Pobreza do governo Xi Jinping logrou tirar da extrema pobreza cerca de 100 milhões de pessoas. Estudo feito pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social (2021), mostra que em torno de 850 milhões de pessoas foram retiradas da linha da extrema pobreza nas quatro décadas entre 1980 e 2020, quando o governo anunciou o cumprimento da meta de erradicação da extrema pobreza, reduzindo a população considerada abaixo da linha da pobreza no país para 0,1%, o que contribuiu diretamente para a redução da pobreza no mundo. A maior parte da população beneficiada é camponesa. No Brasil, o número de pessoas em situação de pobreza, fome e malnutrição ainda é alto.
Na estratégia chinesa de erradicação da pobreza está um grande processo de mecanização da agricultura e de modernização do campo. O processo de industrialização chinês contou com alto grau de desenvolvimento tecnológico, com enorme quantidade de máquinas agrícolas adaptadas à realidade da agricultura de pequena e média escalas do país. De acordo com a CAAMM, a China possui mais de oito mil fábricas de maquinário agrícola[30], a maioria dedicada à fabricação de máquinas de médio e pequeno porte, abarcando todas as etapas das cadeias produtivas de alimentos, em todos os setores da produção. Costumo dizer que na China existe máquina até para descascar banana.
Realmente, quando tive a oportunidade de participar em 2021 da Feira Internacional de Máquinas Agrícolas da China (CIAME, China International Agricultural Machinery Exhibition)[31] em Qingdao, província de Shandong, no Norte da China, pude ter uma dimensão da produção industrial de máquinas agrícolas do país. Havia uma infinidade de máquinas pequenas e médias de vários tipos e tamanhos, categorizadas por cadeias produtivas, adaptáveis, autônomas – motor a combustível ou elétricas –, como tratores médios, microtratores, tratoritos, mini colheitadeiras de arroz, pequenas debulhadoras de grãos, descascadoras de arroz elétricas, coletoras de frutas semimanuais, equipamentos de manejo à bateria/elétricos e enorme variedade de implementos. Dessa visita saiu a primeira proposta de lista de máquinas que poderiam ser testadas no Brasil.
Figura 1 - Evolução da quantidade de máquinas agrícolas na China (2004-2022)
Legenda: tratores pequenos (laranja); tratores médios e grandes (azul); colheitadeiras combinadas/ceifadeiras e debulhadoras (verde). Fonte: NBS (2024).
No gráfico acima pode-se observar a imensa quantidade de tratores pequenos na China. Em 2022, a quantidade de tratores pequenos correspondia a 75,5% de todos os tratores da China (16,1 milhões de unidades) versus 24,5% de tratores grandes e médios (5,2 milhões de unidades). Na série histórica (2004-2022), houve um crescimento no número de tratores grandes e médios de 1,1 milhões para 4,9 milhões e de 410,5 mil colheitadeiras combinadas para 2,2 milhões. De acordo com Ramos (2023), repórter do jornal Brasil de Fato na China, que compõe a Brigada Liang Jun, entre 2004 e 2015 a China “destinou 120 bilhões de yuans (mais de 82 bilhões de reais), para subsidiar a compra de mais de 35 milhões de máquinas. Durante esse período, o nível de mecanização agrícola na China passou de 33% para 61%. Atualmente, a cifra é de 73%”.
No Brasil, conforme o Anuário Estatístico da Agricultura Familiar 2023 (CONTAG, 2023)[32], 77% dos estabelecimentos agrícolas são da agricultura familiar (3,9 milhões de propriedades), ocupando 23% das terras agricultáveis (80,8 milhões de hectares)[33]. De acordo com o Censo Agropecuário de 2017 (IBGE, 2017), apenas 12% da categoria possui maquinário agrícola. Se comparadas, a região Sul possui 44% da sua agricultura familiar com algum nível de mecanização; enquanto a região Nordeste, que responde por 47% da agricultura familiar do país (1.838.846 de agricultores), possui apenas 2,3%. No Semiárido, essa porcentagem é ainda menor (1,5%), sendo 0,1% adubadoras, 0,1% colheitadeiras, 0,3% plantadeiras e 1,3% tratores. Segundo o Censo Agropecuário (IBGE, 2017), a agricultura familiar corresponde a 23% do valor bruto da produção agropecuária do país e a 67% das ocupações no campo (10,1 milhões de trabalhadores, 46,6% no Nordeste, 74% destes no Semiárido). Além da produção de alimentos, responde por 40% da renda da população economicamente ativa, como também pela dinamização econômica de 90% dos municípios com até 20 mil habitantes, que representam 68% do total.
Dados organizados por Aquino (2023) para o Instituto Fome Zero (IFZ)[34], com base no censo, demonstram que a agricultura familiar do Nordeste gera ocupação para 4,7 milhões de pessoas e é responsável pela produção regional de 62% do arroz em casca, 60% do feijão, 80% da mandioca e 61% do leite de vaca e por 48% dos rebanhos de bovinos, 72% dos caprinos e 70% dos ovinos. Ademais, 66% dos agricultores familiares nordestinos possuem áreas de até 10 hectares, com pouco acesso à água, 93% não têm acesso a Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), 42% das pessoas chefes dos estabelecimentos são analfabetos, 51% não possuem telefone e 80% não têm acesso à internet.
Diante desse cenário, o MST, em 2024, completou 40 anos de uma luta histórica pela realização da Reforma Agrária no Brasil. O Movimento conta atualmente com 400 mil famílias assentadas e cerca de 70 mil famílias acampadas nos 24 estados onde está organizado. São 185 cooperativas, 120 agroindústrias e 1.900 associações coordenando diversas cadeias produtivas de alimentos agroecológicos ou em transição. As 17 principais cadeias são arroz, com 16 mil toneladas (t) em 2023; café, com 10 mil t em 2023; e outras como leite, frutas e sucos, castanhas, pimentas e condimentos, mel, mandioca, carnes, milho, soja, feijão, cacau, açaí, cana de açúcar, ovos e tomates orgânicos[35].
Para o MST, a agroecologia se caracteriza como uma matriz tecnológica produtiva do modelo de produção agrícola camponês. O campesinato é o sujeito histórico do que hoje se chama agricultura familiar. Portanto, as famílias de agricultores familiares que não foram capturadas pelo modelo de produção do agronegócio por meio de subsunção seguem sendo famílias camponesas. Portanto, nem todo agricultor familiar é camponês, mas todo camponês é agricultor familiar. O que o movimento agroecológico por vezes chama de modo de vida, referindo-se à agroecologia, justificado pela cultura e forma de produzir, é o campesinato, tendo a agroecologia se tornado sua matriz, que defendemos ser científica, tecnológica e produtiva, para alimentar toda a sociedade, no campo e na cidade. Essa matriz tem sido capturada em boa medida pelo agronegócio. A matriz pode ser instrumentalizada por um modelo de produção agrícola que não o da agricultura familiar, mas o campesinato com sua cultura e seu modo de vida segue sendo uma classe em si ou para si.
É com esse sujeito que o MST constrói a RAP. Um novo paradigma criado pelo Movimento que congrega uma série de fatores para a emancipação humana por meio da transformação do campo em um lugar do bem viver. De acordo com o Movimento (MST, 2024), não se trata de uma reforma agrária socialista, mas também não é uma reforma agrária clássica-burguesa de cunho capitalista. O Movimento reivindica a democratização da terra para um modelo de desenvolvimento agrícola centrado na produção de alimentos saudáveis com preservação da natureza e com o objetivo de proporcionar soberania alimentar para o país. De acordo com o novo Programa de Reforma Agrária Popular (MST, 2024), “a adoção da agroecologia, da agricultura orgânica, do pastoreio racional, da agroindústria popular, de novas técnicas, tecnologias e maquinários que promovam o desenvolvimento e a modernização da agricultura, sem a destruição ambiental, são características imperativas do modelo de agricultura da Reforma Agrária Popular”.
A RAP é fundamentada numa perspectiva de articulação campo-cidade para mobilização, defesa e luta pelo modelo agrícola da agricultura familiar camponesa, para produção de alimentos saudáveis para toda a sociedade, frente ao modelo destrutivo do agronegócio. O MST reivindica um modelo de desenvolvimento rural que tenha como eixos centrais a agroecologia e a produção orgânica de alimentos pelo campesinato; a permanência das famílias no campo para produção e reprodução da vida e da cultura; cooperação, agroindústria e tecnologia adaptada e contextualizada; economia popular e solidária para o interesse coletivo; e preservação da natureza.
Considerações finais
Parto do pressuposto de que está claro o potencial da agricultura familiar brasileira e de como a mecanização e tecnificação desta podem alavancar o desenvolvimento econômico com melhoria da renda familiar, em especial no Nordeste do Brasil. Esse desenvolvimento é necessário para a manutenção da população no campo, com vida digna, evitando o aumento da taxa de urbanização que gera contradições e desigualdades. Finalizo este ensaio com algumas considerações a respeito da agricultura familiar e da importância do desenvolvimento tecnológico com foco na agroindustrialização, cooperativismo e estruturação de cadeias produtivas para fortalecimento econômico, melhoria da qualidade de vida e enfrentamento à pobreza nos marcos da RAP.
A primeira reflexão é sobre a Reforma Agrária. Perante descontentamento do MST e outros movimentos e organizações sociais do campo e sob pressão provocada pela jornada de lutas do “abril vermelho” do MST, com mais de 35 ocupações em 15 estados em 2024, o atual governo Lula apresentou uma “prateleira de terras” a serem desapropriadas ou regulamentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) através do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA). O Programa Terra da Gente propõe incluir 295 mil famílias no PNRA, com investimento de 520 milhões de reais na aquisição de imóveis para o assentamento de 73 mil famílias. A direção do MST diz que, apenas para assentar as famílias acampadas, o orçamento deveria chegar a pelo menos 1 bilhão de reais. No bojo do lançamento do Programa, o presidente do INCRA, Cezar Aldrigui, apresentou um plano de assentamentos em assembleia com o MST, o qual mostra grande concentração de latifúndios improdutivos na região Nordeste, mas com pouca possibilidade de desapropriação, segundo ele. Segundo dados do IBGE (2017), o índice Gini para concentração de terras no Brasil ainda está na casa dos 0,867, um dos maiores do mundo.
A segunda consideração é sobre a capacidade produtiva da agricultura familiar brasileira, principalmente do Norte e Nordeste. Aqui vale lembrar que, apesar de estarmos nos referindo em geral a máquinas pequenas e médias, isso pode variar a depender da experiência e da cadeia produtiva. Para muitas áreas, os tratores maiores para arar a terra são efetivos quando utilizados de forma cooperada. Ademais, também não devemos pensar somente nas etapas de manejo das cadeias produtivas, mas também na agroindústria. Portanto, a estratégia de mecanização deve passar também por obter tecnologias como despolpadeiras, selecionadoras e empacotadoras, desidratadoras etc. e tecnologias voltadas para armazenamento de sementes para plantio, como para comercialização. Assim, deve-se ter em conta que um processo de modernização da agricultura familiar precisa contar com a estruturação de cadeias produtivas em todas as etapas, da produção à comercialização, inclusive com agroindústria de médio e grande porte.
A terceira questão é sobre a forma de organização coletiva do Nordeste em particular. Culturalmente, o campesinato nordestino se organiza em associações, tornando a região frágil em termos de cooperativismo. Isso se dá pela dificuldade – por fatores naturais – de desenvolver processos produtivos perenes, que gerem renda o ano todo e mantenham as famílias engajadas. Mas a seca, que é um fenômeno natural, não pode justificar a falta de organização das cadeias produtivas da região. Com tecnologias adaptadas é possível estruturar cooperativas para organizar as famílias em circuitos produtivos completos e permanentes, da produção à agroindustrialização e comercialização. A falta de acesso aos recursos necessários fez com que o campesinato do Norte e Nordeste não desenvolvesse culturalmente a agroindústria familiar, como ocorre, por exemplo, no Sul, onde as famílias fabricam geleias, bolos, pão, queijos e beneficiam muitos outros produtos.
A quarta e última consideração é sobre a importância da agricultura familiar para a alimentação saudável. O Brasil é o maior importador e consumidor de agrotóxicos no mundo. Segundo levantamento feito pela FAO em 2021 (Konchinski, 2024), para cada hectare plantada no Brasil, são utilizados 10,9 kg de agrotóxicos (1,9 kg/ha na China). O consumo por pessoa em 2021 foi de 3,31 kg de agrotóxicos (0,17 na China). A professora Larissa Mies Bombardi, do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), vem alertando através do seu livro Agrotóxicos e Colonialismo Químico para como o Brasil se tornou depósito de agrotóxicos produzidos e proibidos na União Europeia. Segundo Bombardi (2023), “entre 2020 e 2021, o Brasil dobrou o uso de agrotóxicos, saindo de 360 mil toneladas para 719 mil. Entre os 10 mais vendidos por aqui, cinco são proibidos na União Europeia”. O cultivo de soja teve um aumento de mais de 200% nos últimos anos, de acordo com o (Konchinski, 2024). Está na pauta do Congresso Nacional brasileiro um “pacote de venenos” e a aprovação de variedade de soja resistente a agrotóxico banido ao redor do mundo, além da questão dos transgênicos e ultraprocessados. Tudo isso está diretamente relacionado ao modelo de produção do agronegócio. A agricultura camponesa tem a capacidade de produzir alimentos agroecológicos em grande quantidade e diversidade, fundamentalmente se fortalecida com políticas públicas e modernização tecnológica.
Assim, encerro este texto refletindo sobre algumas experiências. Recordo como antes o cuscuz era produzido na propriedade, pela família, utilizando um moinho manual. Na ausência de novas tecnologias, hoje se consome apenas o cuscuz industrial comprado no mercado convencional. Recentemente, agricultores familiares do território da Borborema, na Paraíba, lançaram a primeira agroindústria de flocos de milho crioulo (semente nativa) agroecológico e estão produzindo e comercializando o “cuscuz da paixão”. A farinha de mandioca, por sua vez, era um típico produto de fabricação comunitária nas antigas casas de farinha. No entanto, por falta de mecanização e outras questões, foi perdendo espaço para a grande indústria. Pouco tempo atrás começaram a chegar novas casas de farinha mecanizadas em comunidades produtoras de mandioca.
À medida que algumas experiências foram se desenvolvendo, se foi vendo que é possível avançar para um estágio mais moderno da agricultura familiar, principalmente no Norte e Nordeste do país. No Sul, é comum ver desidratadoras de frutas ou de ervas para chás, por exemplo; ou coisas simples, como fazer um purê de batata-doce. Mas só no período recente passou-se a produzir no Nordeste polpas de frutas da agricultura familiar camponesa. Na Paraíba, o MST desenvolveu a cadeia de caprinovinocultura, com industrialização do leite de cabra, produzindo grande diversidade de bebida láctea e queijo dos mais variados sabores; no Ceará o Movimento avançou na estruturação das cadeias do mel e castanha; no Pernambuco o flocão de milho; a farinha de puba no Maranhão; o cacau para fabricação de chocolate na Bahia e assim por diante. Já é mais comum, encontrar experiências de beneficiamento de mandioca na agricultura familiar do Nordeste e da região amazônica.
Ainda não se desenvolveu máquina apropriada ao beneficiamento do coco-babaçu para fabricação do azeite de dendê – trabalho feito a mão pelas quebradeiras de coco das comunidades dos babaçuais no Maranhão – e ainda pouco se beneficia, na agricultura familiar, as frutas da caatinga, o açaí, o cupuaçu, o amendoim. Não há máquinas para facilitar a coleta, transporte e processamento de frutas. Não se desenvolveu tecnologia (incluindo genética) para aproveitamento da produção de umbu, por exemplo. Não há estrutura para beneficiamento de feijão e outros grãos. A palma forrageira não é explorada o suficiente para cosméticos e alimentação, e seu fruto (“figo da índia”) é vendido a preços altos em supermercados do Sudeste do país. Sem falar no manejo, produção e reprodução de pequenos animais e aves para produção de carnes e ovos da agricultura familiar camponesa.
Nesse sentido, o processo chinês pode ser tomado como exemplo e fonte de experiência para um projeto de desenvolvimento agrário para o Brasil, fundamentado na agricultura familiar camponesa agroecológica[36]. É por essa razão, pela minha própria experiência de vida e especialmente pela minha militância no MST, que me dedico a discutir esse tema e contribuir para a construção de estratégias para modernização da agricultura familiar, não só no Nordeste, mas em todo o Brasil e no mundo, em especial, junto ao campesinato organizado. Sabendo que ainda há muito o que estudar e debater, compreender e propor, espero poder ter contribuído para o conhecimento e reflexões.
Referências bibliográficas
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Janailson Santos de Almeida E-mail: janailsonagroecologia@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/6449942581957786 ORCID: https://orcid.org/0009-0006-2309-948X |
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 19, 1-23, e025014, jan./dez. 2025 • ISSN 1984-9834
[1] Ato de capinar ou limpar a roça entre o plantio e a colheita para retirada do mato verde ou de ervas espontâneas ou daninhas, com o intuito de proporcionar o crescimento das plantas. O verbo xaxar se refere ao gesto de levar a enxada de um lado para outro ao "limpar a roça", simulando a dança do xaxado (ritmo musical típico do Nordeste brasileiro).
[2] Propriedade de terra.
[3] Plantadeira e semeadeira manual de grãos. O instrumento possui um formato de tesoura que, ao ser fechado e aberto, solta uma quantidade de grãos e os insere na terra. O movimento faz um barulho que, em sequência, ganha sonoridade. Assim, foi apelidado de matraca.
[4] Capim, palma forrageira, mandacaru (cardeiro). Ainda existe a prática de coletar mandacaru e retirar os espinhos para depois cortar ou triturar para dar aos animais.
[5] O campesinato no Nordeste chama as colheitas de grãos de “bater feijão ou milho”, pois antes se batia “a pau”.
[6] Geralmente, um ou outro agricultor, produtor ou agropecuarista médio da região possui trator com grade para arar e batedeira (debulhadora ou descascadeira acoplada ao trator) e é contratado pelos pequenos agricultores por hora de serviço. Isso pensando apenas em instrumentos para uso na agricultura.
[7] No caso do “corte de terra”, o valor é pago em dinheiro (a não ser que seja um “trator da prefeitura”). Nas colheitas, o agricultor familiar pode pagar o serviço com a décima parte de sua produção, chamada conga.
[8] Ainda é muito comum os camponeses irem semanalmente às cidades ou centros urbanos para comprar produtos de consumo nas feiras livres.
[9] Sobre o assunto, ver também Chã (2018).
[10] “el nuevo ‘Consenso de los Commodities’ conlleva la profundización de la dinámica de desposesión o despojo de tierras, recursos y territorios y produce nuevas y peligrosas formas de dependencia y dominación” (Svampa, 2013, p. 32).
[11] “Las inversiones que la región latinoamericana recibe de China, no tienden a desarrollar capacidades locales, ni actividades intensivas en conocimiento o encadenamientos productivos. La localización de las empresas chinas, como los préstamos contra commodities, tiende a potenciar las actividades extractivas en detrimento de aquellas con mayor valor agregado, lo cual refuerza el efecto reprimarizador que nuestras economías viven bajo lo que hemos llamado el ‘Consenso de los Commodities’” (Svampa; Slipak, 2015, p. 48).
[12] Disponível em: https://bricspolicycenter.org/forum-de-cooperacao-china-africa-focac/. Acesso em: 13 jul. 2024.
[13] A cooperação com o MST não é a única experiência de cooperação tecnológica chinesa para o fortalecimento da agricultura camponesa. Há outras experiências similares conhecidas no Brasil, América Latina e Caribe e no continente Africano por meio do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e dos tradicionais fóruns de cooperação, como o FOCAC e o Fórum China-CELAC.
[14] A agência, que teve Josué de Castro como diretor executivo, segue a lógica de desenvolvimento das outras agências da Organização das Nações Unidas (ONU), com estratégias de ajuda humanitária para o combate à fome e programas de cooperação que focam em experiências individuais e comunitárias locais e regionais, como modelos de projetos para promoção da agricultura sustentável. A FAO tem um programa de cooperação Sul-Sul, mas com pouca ou nenhuma articulação com as organizações camponesas de base. Atualmente, a FAO é presidida pelo chinês Qu Dongyu.
[15] O MST também abriu canais de diálogo político com outros atores na China, através de outras articulações internacionais das quais participa, como a Assembleia Internacional dos Povos (AIP) e o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
[16] Grupo de militantes enviados para cumprir tarefas específicas dentro ou fora do país. O MST e o LVC possuem algumas brigadas internacionais em tarefas estratégicas, de trabalho solidário, como no Haiti, em países da África e pontualmente na Palestina; bem como em intercâmbios em agroecologia ou estudo, como Cuba, Venezuela, México e Colômbia; e outras de articulação e cooperação, como na China.
[17] Homenagem à primeira mulher tratorista da China. Liang Jun cumpriu o feito ainda em 1948 e inspirou várias outras mulheres rurais durante o processo chinês. Ela faleceu em 2020 e foi amplamente homenageada no país.
[18] A construção inicial junto às instituições na China durou cerca de dois anos, até que se pudesse avançar para a articulação que veio a se concretizar no programa de testagem de máquinas e outros projetos. A essa altura, voltei ao Brasil, e a articulação seguiu com outros militantes que foram para a China dar continuidade ao trabalho (além dos que já estavam lá), como o atual coordenador da Baobá na América Latina. Nos dois anos que fiquei lá, tive a oportunidade e o privilégio de conhecer a CAU e a professora que se tornou a principal responsável pela construção da parceria com a Baobá. Antes dela, outros professores contribuíram para a aproximação com a CAU e a partir da relação com esta vários outros professores e outras instituições se envolveram no projeto de cooperação China-América Latina, como a China Association of Agricultural Machinery Manufacturers (CAAMM) através do seu diretor, que também é professor da CAU, e o Instituto de Pesquisa em Reciclagem Orgânica da CAU em Suzhou (Organic Recycling Research Institute) através de um importante professor e pesquisador em Bioinsumos.
[19] A princípio, foi chamada de World Peasant Cooperation Association (WPCA), com a ideia de focar na cooperação camponesa. Depois se pensou a articulação para além do campesinato e foi dado o enfoque da cooperação popular; também foi substituído o termo mundial, que se confundia com outras inúmeras organizações, pelo termo internacional.
[20] Nome popular da organização (simbólico). Também foi criado um website (https://www.roots-iapc.org/) para publicações chamado Roots ou Raízes.
[21] O acordo se deu com intermédio também do atual secretário da Secretaria de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar (SEDRAF) do estado do Rio Grande do Norte, que é também professor da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN) e diretor da Câmara Temática da Agricultura Familiar do Consórcio Nordeste.
[22] Como a Fundação de Amparo e Promoção da Ciência, Tecnologia e Inovação do RN (FAPERN), a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e o Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN).
[23] No total, chegaram 20 tipos de máquinas, que foram distribuídas entre os estados do RN, Maranhão, Ceará e Paraíba, para serem utilizadas em campos experimentais de cadeias produtivas estratégicas de acordo com os tipos de máquinas. Entre elas, chegaram mini colheitadeira de arroz, tratorito, microtrator com equipamentos como arado de disco reboque, plantadeira, colheitadeira e semeadora de alta precisão, além de tecnologia para controle de insetos e até drone agrícola.
[24] A proposta de instalação de fábrica no Brasil foi amplamente reforçada no ato de entrega das máquinas em Apodi-RN no início de 2025, com discussão sobre transferência de tecnologia e fortalecimento da indústria brasileira através do uso de até 80% de conteúdo nacional. Disponível em: https://www.canalrural.com.br/agricultura/ministro-pede-a-china-instalacao-de-fabrica-de-maquinas-agricolas-no-brasil/. Acesso em: 28 jul. 2024.
[25] Disponível em: https://portal.uern.br/blog/uern-discute-criacao-de-centro-de-inovacao-e-tecnologia-em-agricultura-familiar-em-parceria-com-a-china/. Acesso em: 28 ago. 2024.
[26] O conceito de RAP construído pelo MST foi definido como principal linha política do movimento a partir do 6º Congresso Nacional em 2014. Disponível em: https://mst.org.br/2021/07/16/o-que-e-o-programa-de-reforma-agraria-popular-do-mst/. Acesso em: 29 jul. 2024.
[27] A Baobá tem foco até então em cinco áreas estratégicas para cooperação camponesa popular no âmbito do desenvolvimento tecnológico: máquinas agrícolas, cadeia produtiva do arroz, cadeia produtiva do cacau, bioinsumos e energia solar. Em 2022, o coordenador da Baobá África visitou a experiência de produção de cacau do MST na Bahia. Disponível em: https://mst.org.br/2022/08/30/associacao-internacional-para-cooperacao-popular-visita-experiencias-do-mst-na-bahia/. Acesso em: 2 ago. 2024.
[28] Visita da Baobá à Rede de Grupos de Agricultores da Tanzânia. Disponível em: https://www.mviwata.or.tz/long-live-the-solidarity-of-the-people/. Acesso em: 2 ago. 2024.
[29] Ver também Dongsheng News (2024). Disponível em: https://dongshengnews.org/pt/como-a-china-garante-a-seguranca-alimentar/. Acesso em: 3 ago. 2024.
[30] O Brasil possui apenas oito fábricas de pequenas máquinas agrícolas, conforme a ABIMAQ Data (base de dados da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos – ABIMAQ). Um dos diretores da entidade argumentou durante o evento de lançamento das máquinas chinesas no Apodi-RN que apenas 73, entre as cerca de 20 mil fabricantes cadastradas na ABIMAQ, fabricam algum tipo de máquina de pequeno e médio porte. Disponível em: https://mst.org.br/2023/07/21/intercambio-tecnologico-entre-china-e-brasil-permitira-uma-revolucao-no-campo/. Acesso em: 5 ago. 2024.
[31] A feira teve como tema Revitalização Rural e Agricultura Inteligente, com uma área de exposição de mais de 220.000m², cerca de 2.000 expositores chineses e estrangeiros, mais de 30 fóruns e 150.000 visitantes profissionais. Nessa oportunidade, fui convidado a dar uma entrevista sobre a agricultura familiar brasileira para a mídia oficial da feira.
[32] Documento produzido pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (CONTAG) em parceria com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), baseado em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com o documento, se a agricultura familiar brasileira fosse um país, seria a 8ª produção agrícola do mundo.
[33] Corresponde a quase toda a área do estado do Mato Grosso (MT), por exemplo.
[34] Segundo Aquino (2023), o “II Inquérito da Rede PENSSAN revelou que o acesso pleno à alimentação abarcava apenas 16% dos domicílios de agricultores familiares nordestinos entre os anos de 2021 e 2022. Enquanto isso, 21% enfrentavam alguma situação de insegurança alimentar moderada e 23% estavam passando fome em situação de insegurança alimentar grave”.
[35] O governo federal lançou o Plano Safra da Agricultura Familiar 2024 com valor recorde de 77,7 bilhões de reais (34% maior do que o anterior) (MDA, 2024). Mas ainda muito inferior se comparado aos mais de 400 bilhões destinados ao agronegócio.
[36] Disponível em: https://mst.org.br/2023/07/04/reforma-agraria-popular-e-tecnologia-no-campo-por-um-projeto-de-brasil/. Acesso em: 13 jul. 2024.